Laura Rubião

CAMPOS, Sérgio de. Supereu/Uerepus. Da origem aos seus destinos.
Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 2015. 276 p.

 

Supereu/Uerepus: das origens aos seus destinos é o título do novo livro de Sérgio de Campos, recentemente publicado pela Editora da Escola Brasileira de Psicanálise. Fruto de uma pesquisa realizada entre os anos 2000/2002 no âmbito do mestrado em Estudos Psicanalíticos da UFMG, esse precioso texto vem sofrendo, desde então, reparos, acréscimos, intervenções, até atingir sua forma final de livro, que ora chega ao alcance de seus leitores.

Um trabalho de fôlego que nos apresenta a depuração rigorosa do conceito freudiano de supereu, ao explorar no detalhe suas nuances teóricas, bem como suas incidências clínicas. O livro pode ser concebido como uma fina leitura de muitas outras leituras provocadas pelo texto freudiano que conserva, ainda hoje, uma vivacidade surpreendente. Temos o privilégio de encontrar no minucioso trabalho de Sérgio o conceito de supereu capturado a partir da densidade epistêmica que lhe é própria: composto de paradoxos e injunções vorazes.

Cada leitor poderá fazer aí um percurso singular, colocando a ênfase aqui ou ali, priorizando as origens clínicas, filosóficas ou éticas caras a esse conceito, fazendo do livro um vetor para o desejo do analista articulado à clínica ou tomando-o como um fecundo instrumento de pesquisa.

Lançada ao desafio de apresentá-lo por meio desta breve resenha, me vejo forçada a escolher um entre os muitos caminhos e vetores abertos pela pesquisa de Sérgio.

Tomarei então como ponto de partida a contribuição de Melanie Klein, cuja perspicácia teórico-clínica não escapou ao interesse de Sérgio de Campos. É possível tomar a apropriação kleiniana do conceito de supereu como uma espécie de centro norteador para muitos dos desdobramentos propostos pelo autor.

A célebre frase freudiana “O supereu é o herdeiro do complexo de Édipo” difundiu em larga escala a ideia de que esse agente psíquico seria encarregado de promulgar a lei em consonância com os ideais extraídos do drama edípico. Essa vertente vem situá-lo como instância que regula, sublima e abstrai os investimentos primários da pulsão recalcados no inconsciente e submetidos à lógica distributiva da justiça paterna. Estaríamos no plano da culpa que retifica e apazigua, engendrando uma série de compensações, trocas, perdas e substituições.

Ora, a perspicácia de Klein foi justamente captar a vertente sádica do supereu, explorando suas raízes pré-edípicas e avessas à racionalidade da lei paterna. Uma leitura que valoriza os desdobramentos freudianos mais tardios, pautados na supremacia da pulsão de morte e na articulação do supereu ao Isso. Em seu livro, Sérgio nos deixa a questão se não teria sido justamente o texto de Klein a fonte inspiradora de Lacan para nos “[...] revelar um supereu que se situa num núcleo primário, duro e sem sentido no arcabouço da linguagem e que, como imperativo, empurra o sujeito ao gozo”.[1]

Lacan vinculou as origens do supereu a esse imperativo insaciável que, quanto mais exige sacrifícios, mais decidida e intolerantemente renovará suas exigências atormentadoras. Segundo Sérgio, o supereu responde à “economia do agiota”, na qual prevalece o paradoxo de uma dívida irracional: “[...] quanto mais se paga, mais se deve”.[2] Estamos no cerne do que Lacan chamou de lei insensata, que se expressa por uma vertente compulsiva, à margem do princípio do prazer. Tudo funciona como se a própria lei estivesse contaminada por aquilo que pretende censurar e, no cerne do ato sacrificial, estivesse o encontro inadiável com o horror da coisa da qual se pretende afastar. Um “olhar medusante”, que petrifica o sujeito, uma voz acusadora, uma gula sem fim marcam a cumplicidade do supereu com a satisfação infinita da pulsão que ultrapassa os propósitos atenuadores dos ideais calcados na consciência moral.

Foi ainda Klein, em franco desacordo com as propostas ortopédicas de Anna Freud, quem chamou a atenção para a dimensão residual do imperativo superegoico que não se dissolve inteiramente na análise. Sobre esse resíduo opaco que toca o real da experiência analítica, testemunham os diversos colegas AEs ao final do livro. Cada um a seu modo pôde transmitir, contudo, a via possível aberta na análise para se colocar, nas palavras de Sérgio, em ‘desalinho’ com relação aos mandatos do supereu. Seja por um recurso à nomeação, seja por um apelo ao humor ou pela via da declinação das demandas invocantes do Outro, muitos desses instigantes testemunhos nos permitem perceber que o que antes era vivido como exigência inexorável passou a se circunscrever no campo da contingência inerente ao encontro do falasser com o S (Ⱥ).

Fica o convite à leitura. Que ela possa ativar em cada um o desejo de conhecer um pouco o caminho que leva do supereu a seu avesso singular, uerepus.

Laura Rubião é psicanalista. Doutora em Letras pela FALE/UFMG é também autora do livro A ética do bem-dizer nos estudos lacanianos sobre a comédia. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.

Derivas analíticas agradece a Laura Rubião por sua contribuição com este número da revista.

Notas

[1] CAMPOS, 2015, p. 132.

[2] Campos, 2015, p. 187.

 

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