Adriana Varejão:

“Celacanto provoca maremoto”[1]

Márcia Rosa

 

Depois de enfatizar que a contemporaneidade é uma relação singular com o próprio tempo, que adere a ele e, simultaneamente, dele toma distâncias, Agamben interroga: “de quem e de que somos contemporâneos?” Essas perguntas, ele as extrai das Considerações intempestivas (1874), nas quais Nietzsche busca acertar contas com seu tempo, tomar posição em relação a ele. Nesse livro, o jovem filólogo localiza a sua exigência de atualidade e a sua contemporaneidade em relação ao presente em uma desconexão: “pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 58).

Impossível não evocarmos aqui os comentários do psicanalista Lacan em seus Escritos, quando situa o engajamento do psicanalista na sua prática. Ao lermos o jovem Lacan com Nietzsche, percebemos que o psicanalista não alcançará em seu horizonte a subjetividade de sua época (LACAN, 1953/1998, p. 322) sem que tenha experimentado, em relação a ela, uma desconexão, uma dissociação. Frente a isso, cabe perguntar: em que pontos a psicanálise adere e em quais outros ela se desconecta, se dissocia de nossa época? De que modo ela é inatual?

1 - Das pequenas às grandes navegações ou sobre restos (origens) não tão dignos

No final dos anos 1970, emergiu “do rescaldo das pichações políticas contra a ditadura que predominavam até então” (ARAÚJO, 2011, s.p.) uma batalha nonsense entre duas pichações que apareciam nos lugares mais inesperados da zona sul do Rio: de um lado lia-se “lerfámú” e, de outro, “celacanto provoca maremoto”. Fiel ao espírito street, a batalha viralizou-se e até mesmo a grande imprensa da época se mobilizou no deciframento das legendas. Descobriu-se, então, que a frase enigmática provinha de um seriado cult japonês, Nacional Kid contra os Seres Abissais, pai do Jaspion e avô dos Power-Rangers, seriado patrocinado pela Panasonic (National Electronics Inc.) e exibido pela televisão brasileira na década de 1960. No filme, um oceanógrafo bastante estranho adverte um grupo de garotos: “Não se aventurem nas profundezas do oceano. O celacanto [um peixe de tamanho colossal], quando se enfurece, emite ondas de ódio” (ibid.), provoca maremotos. O pixador, um jovem universitário de 17 anos, travava uma batalha com outro pixador, um universitário da mesma idade, que grafitava: LERFÁMÚ. Pelos relatos de uma garota da época, os criadores do LERFÁMÚ eram divertidíssimos e, com o melhor senso de humor, criaram o neologismo, “mera corruptela do private joke que invertia sílabas na gíria de iniciados do bairro dizendo em código ‘lerfa-mu lhobagu’ para falar “vamo’ fumá’ um bagulho?” (ARAÚJO, 2011, s.p.). De modo chistoso e involuntariamente, os pixadores, com sua arte das ruas, funcionaram como agentes provocadores e contemporâneos de seu tempo – simultaneamente aderidos e desconectados dele –, sendo “ingenuamente repetidos por autoridades e pessoas públicas, que disseminavam o uso da canabis sem nenhuma intenção – para a alegria dos grafiteiros e doidões locais” (ARAÚJO, 2011, s.p.). Ainda no final dos anos setenta, conforme a lenda urbana do teaser-graffiti, a enigmática frase inspirou a ação de um hacker que, depois de sabotar o computador do Instituto Militar de Engenharia, fez com que, nos cálculos de uma raiz quadrada, a cada número x de frases impressas uma era “Celacanto provoca maremoto”. Impossível não evocar aqui o campo do mal-entendido da linguagem! Uma dezena de anos após (2004-2008), a famosa e enigmática frase é recuperada como o título que nos coloca diante das 184 peças de 1.10 x 1.10, ou dos quase 200 metros quadrados de óleo e gesso sobre tela, de Adriana Varejão, obra criada para ser exposta no Museu Inhotim.

É interessante observar, com Walter Benjamin (1994), que da estética clássica para a contemporânea o “valor de culto e contemplação das obras de arte foi substituído pelo seu valor de exposição” (p. 174-175). Com isso, as obras deixam de se prestar à contemplação livre e passam a desassossegar o observador que, para se aproximar delas, busca as legendas. Assim, não é de todo inusitado entrarmos na obra de Varejão pelas lendas e legendas. No caso da obra em questão, a legenda nos lembra que a artista se vale do barroco e da azulejaria portuguesa, evocando a colonização e a ligação entre o Velho e o Novo Mundo via mar e grandes navegações. Todavia, nisso que a própria artista denominou “ficção histórica” (VAREJÃO, 2005, s.p.), os azulejos são expostos como “peças avulsas”, “pedaços de real” que não deixam de fazer referência ao modo desordenado com o qual se repõem os azulejos quebrados do barroco. Com isso, o ser abissal e transcendente, que teria sido a encarnação de um grande Outro caprichoso e cruel e que agitava os mares, Celacanto, surge misturado a feições angelicais, formando, como diz a legenda, uma calculada arquitetura do caos.

Ali terá havido uma cena, mas no contemporâneo da escultura tridimensional ela não se mostra senão a partir de vestígios, de peças soltas. Essas últimas tiram da frase “Celacanto provoca marremoto”, a qual não deixa de exercer funções fantasmáticas obviamente, o poder de horrorizar, presente no seu nascedouro na série televisiva, bem como no universo das grandes navegações portuguesas. Depois de ter ganhado um tratamento chistoso, via uma batalha de grafites em lugares públicos, inclusive nos banheiros masculinos da PUC-Rio nos anos setenta, a frase nomeia um muro de peças avulsas, pedaços de real.

Diante deste muro de linguagem com seus rabiscos, deste (a)muro, encontramos Linda do Rosário (2004). Aqui, se os restos são eleváveis à dignidade da coisa, ela, a coisa, não é tão nobre de se ver. É a própria artista quem nos diz que, desde que começou a fazer trabalhos tridimensionais, fotografa restos de ruínas. Assim, depois de ler no jornal uma notícia sobre o desabamento do Hotel Linda do Rosário, um hotel barato de encontros no centro do Rio, ela corre para fotografar os restos de paredes. Por acaso, entre meio-dia e duas horas da tarde se encontrava lá, clandestinamente, um casal de amantes, cujos corpos foram encontrados dias depois nos escombros. Esses vestígios entram como uma “ficção a mais na obra” (VAREJÃO, 2005, s.p.) e desses restos surge Linda do Rosário (2004), parede fria e branca de azulejos, em demolição, da qual brotam vísceras vivas e sangrentas. Os azulejos constituem aí uma espécie de envelope formal que envolve um núcleo de gozo, vivo e pulsante, a carne enquanto substância gozante.

Sob o título Câmera de Ecos, Varejão levou para a Fundação Cartier (2005), em Paris, a montagem Celacanto provoca maremoto e, diante dela, Linda do Rosário, tal como no Museu Inhotim. Observou-se ali o espaço de ressonância criado pela obra e seu efeito perturbador. Nessa ocasião, ela própria nos explica que a sua é uma pintura ilusionista para a qual se serve da obra do gravurista do século XVII, Theodore de Bry. Inspirada nessas gravuras, ela faz uma paródia, “uma ficção histórica”, que comporta a pergunta: afinal, quem é o selvagem, o índio ou o colonizador? Com isso, sua arte toca em questões éticas, políticas e literárias, seja nas cenas antropofágicas, seja na ironia contida em uma imagem na qual índios ensinam como comer o corpo de Cristo na eucaristia.

Ao comentar a Câmera de Ecos, Philippe Sollers (2005) observa que Varejão é uma artista contemporânea e, a isso, nós acrescentaríamos, contemporânea no sentido nietzchiano de alguém que adere e se desconecta de sua época. Temos aí, diz Sollers (2005, s.p.), “a grande tradição barroca sobre um fundo bastante terrível. Um conteúdo contemporâneo, mas o contemporâneo é o quê? É a evacuação do corpo, onde não há nada, nada mais do que espaços abstratos, sem vida e sem memória”. Com seus azulejos frios, simétricos, geométricos, a artista adere ao contemporâneo da arte, toca o real enquanto uma superfície lisa e sem ranhuras – “o real é sem fissuras” (LACAN, 1985, p. 128-129), no-lo advertiu Lacan. Todavia, ela se desconecta e “reintroduz alguma coisa que está na memória do Brasil, de sua história geralmente complicada (colonização da população local...), que se converte em força com essa carne que está por detrás da porcelana, por trás das paredes” (SOLLERS, 2005, s.p.).

Uma das obras expostas fala das saunas contaminadas. A propósito, Sollers observa que “vivemos hoje em um grande banheiro universal, em uma sauna. (...) se você souber dar ouvidos ao que há atrás dos azulejos de seu banheiro, se se entregar a essa tarefa, sentirá o gemido de diversos massacres, grandes massacres. Ali têm muitos deles, e eles estão lá para dizer alguma coisa (...)” (SOLLERS, 2005, s.p.). Das ruínas emerge uma carne fissurada, evocando o erotismo que surge aí como um “teatro da crueldade”, alguma “coisa de muito fria aparentemente, e muito incisiva e pungente” (SOLLERS, 2005, s.p.). Enfim, para o escritor francês, a obra de Varejão comporta um “projeto arquitetônico grandioso, como a memória, que apresenta a si mesma como uma grande arquitetura muito fria e, ao mesmo tempo, extraordinariamente sangrenta” (SOLLERS, 2005, s.p.).

2 - Nós, psicanalistas, somos contemporâneos da obra de Varejão?

Percorrendo o pavilhão dedicado a Adriana Varejão no Museu Inhotim, nós, psicanalistas, somos tocados de modos diversos e podemos dar testemunho disso.

2.1. Martinez: O estatuto do corpo se ancora no mal-entendido

A partir da obra de Varejão, Renata Gomes Martinez, psicanalista filiada à Escola Brasileira de Psicanálise, evoca a observação feita por Lacan de que o “estatuto do corpo se ancora no mal-entendido”, de que ele “só aparece no real como mal-entendido” (LACAN apud MARTINEZ, 2016, p. 37). Para ela, a superfície organizada e asséptica dos azulejos de Varejão é visivelmente transtornada pelo que se deixa entrever do vivo da carne. Podemos pensar que é a partir dos cortes que surge a possibilidade de ver a carne, mas também que foi em torno do rasgo que se construiu a azulejaria-pele.

Minha experiência perceptiva com a tela, continua ela, fala de uma ultrapassagem do que se apresenta como imagem. Meu olhar é capturado na ilusão dos limites entre dentro e fora, perdendo-se nos espaços. Do que fala essa sensação? Como situar o que está fora do visível e o efeito que isso nos causa? Ela propõe, então, a possibilidade de que a obra de Varejão possa nos ajudar na tentativa de localizar algo da dimensão desse falante do corpo que não é discurso, nem gozo do objeto, mas cuja presença ressoa em nós, marcando a viva e tenaz percussão das palavras sobre o corpo.


2.2. Monteiro: O que dizer do savoir-y-faire?

Por sua vez, a psicanalista Cleide Monteiro, também membro da Escola Brasileira de Psicanálise, observa que Varejão inspira-se em coisas que são inusitadas – como saunas subterrâneas, mercados de carnes, banheiros públicos – para introduzir em suas narrativas o que há de pulsional, sem o compromisso com a articulação significante S1-S2. O vazio central da Coisa não é recoberto, mas realçado por esses elementos inusitados. Inspirando-se na estética dos excessos, a artista plástica introduz a dimensão do corte, da descontinuidade. A propósito, Monteiro destaca Linda do Rosário (2004), obra que compõe a série Charques. Embora se inspire em um fato real, a obra acrescenta a ele uma outra cena dentro da cena. Ela observa ainda que Varejão denuncia o semblante da perfeição imaculada. Por trás da boa forma, o real espreita e ela empresta imagem a ele, real, tentando imaginarizá-lo. O próprio belo nome da obra, Linda do Rosário, oculta uma tragédia: a morte que protege as famílias do ilícito e expõe o interior sangrento das tripas da sociedade. (JIMENEZ apud MONTEIRO, 2017, s.p.)

Para o tratamento dado ao real na obra de Varejão, Monteiro retoma o colega Romildo do Rêgo Barros em "Os azulejos de depois". Barros diz de como o detalhe, que porta a profunda discrepância, define a obra da artista:

onde os portugueses nos mostrariam uma caravela, a artista carioca apresentará volutas de tons de azul que fazem pensar no mar enfurecido – na verdade, é o próprio azul que se enfurece -, no qual uma caravela se abismou. (...) O mar enfurecido não é o contrário do deslizar da caravela, senão que está em um tempo diverso, o tempo dos efeitos de uma tempestade, ou da mera passagem do tempo. (...) [a artista cria] entre a carne e a contemplação, entre o Barroco e a 'devolução' que nunca leva de volta aquilo que recebeu. (BARROS apud MONTEIRO, 2017, s.p.)

Já Francisco Xavier (2017), psicanalista participante da Delegação Paraíba da Escola Brasileira de Psicanálise, observa que os artistas nos dão índices sobre o que se passa na cultura contemporânea. Se antes a obra se revestia do belo para poder afastar, fazer barreira ante o horror do real, hoje isso foi ultrapassado. Veja-se Linda do Rosário, obra na qual o muro não faz mais barreira, está partido, não oculta mais, pelo contrário, mostra, expõe o real da carne, dos músculos, das vísceras, muro no qual a imagem encontra-se fraturada e o ideal do belo desgovernado.

2.3. Rubião: A relação do artista com o objeto desvelado de qualquer ideal

Desdobrando os comentários de Xavier, a psicanalista Laura Rubião, também filiada à Escola Brasileira de Psicanálise, nos lembra que, no texto “Escritores criativos e devaneio”, Freud observa que o artista, ao contrário do neurótico, faz circular os produtos de sua fantasia e suborna o público com sua arte (FREUD, 1908, p. 158). Esse termo ‘suborno’[2] é sugestivo, pois nos faz pensar na possibilidade de se inventar um laço para o que, em outras circunstâncias, apenas provocaria tédio ou repugnância.

Para que haja esse suborno (algo da ordem de um artifício que força uma passagem), é preciso que haja captura pela vertente do belo que, como definiu Lacan, é a última barreira a se franquear para atingir o Real. Marie-Hélène Brousse argumenta que, na época do Outro que não existe, essa barreira do belo não opera enquanto tal, e o que surge no primeiro plano é o objeto a desprovido de qualquer véu. (BROUSSE, 2009, p. 202) De fato, a arte contemporânea dispensa os efeitos da unidade e da boa forma, sempre calcados no Ideal. Não há mais nada a se esconder, como na anamorfose dos Embaixadores, de Holbein, e tudo se mostra de uma maneira mais crua ou mesmo cruel.

Se o Outro não existe, torna-se derrisório suborná-lo ou tapeá-lo. Resta ao artista transmitir, com esse objeto desvelado, um modo de satisfação que poderá ser também um nome, uma marca do ser (BROUSSE, 2009, p. 205). O último ensino de Lacan avançou no sentido de tornar esse ponto de real do gozo mais acessível, menos atrelado, portanto, às barreiras fantasmáticas que os modos de vida atuais ajudaram a desconstruir:

O que a análise mostra, se é que mostra alguma coisa (...) é precisamente isto, não se transgride nada. Entrar de fininho (se faufiler) não é transgredir. Ver uma porta entreaberta, não é transpô-la. (...) não se trata aqui de transgressão, mas antes de irrupção, queda no campo de algo que é da ordem do gozo – um bônus. (LACAN, 1992, p. 17)

Se na era do fim do Belo, do fim da História, do fim do Romance etc., ainda é possível utilizar o termo sublimação, temos que fazê-lo de uma nova maneira, a partir de outra perspectiva. Frente ao desgaste das barreiras que serviriam como um ponto de báscula entre o núcleo acéfalo da pulsão e as coordenadas da cultura, como conservar ainda a estratégia sublimatória?, pergunta Rubião.

Colhidos os testemunhos sobre o modo como alguns psicanalistas se sentiram afetados pela obra de Varejão, interessa-nos retomar o fio da discussão sobre a contemporaneidade, não sem antes tecer alguns comentários sobre a teoria da sublimação em Lacan.

3 - Responsabilidades ou, depois de ter estado aderido, tomar distância

Éric Laurent nos esclarece que no seu último ensino Lacan reformula completamente a teoria da sublimação freudiana. No seu entender, Freud apresenta a sublimação como o único modo de se alcançar um gozo sem recalque, o que ocorre na medida em que o artista faz com que o Outro da civilização reconheça seu fantasma como modo de gozo. Lacan, por sua vez, considera que o saber-fazer-aí, a arte, o artifício, nos remete a algo de que não podemos gozar. Nesse sentido, a formulação lacaniana é exatamente o oposto da leitura freudiana. Freud nos diz que um artista não apenas goza de seu sintoma, bem como faz com que o Outro reconheça a legitimidade de seu gozo. Nesse sentido, o público tem o julgamento último na medida em que goza de algo no produto artístico e, então, legitima o gozo do artista. À diferença disso, para Lacan o artista constrói um saber, mas desde aí ele produz mais do que pode gozar. Em vista disso, Laurent conclui mostrando haver na formulação de Lacan uma disjunção entre saber e gozo:

(...) o artista lacaniano é distinto do artista freudiano, porque não goza do que criou senão que é responsável por. (...) Não se é responsável por gozar senão que se é responsável pelo saber-fazer com o qual se constrói algo do qual não se pode mesmo gozar. (LAURENT, 2007, p. 88)

Lembro então que, para Lacan (2007), “não há responsabilidade senão sexual” (p. 62) e, quanto ao sexual, “tudo deve ser retomado desde o início a partir da opacidade sexual. (...) digo opacidade considerando que, primeiramente, não percebemos que o sexual não funda em nada qualquer relação”, observa ele. (p. 62) Em vista disso, podemos concluir que “(...) responsabilidade quer dizer não-resposta ou resposta pela tangente” (p. 62). Já o savoir-y-faire, continua Lacan, vai bem mais longe e inclui o artifício: “ele é um fazer que nos escapa, isto é que transborda em muito o gozo que podemos ter dele” (p. 62). Portanto, o artista lacaniano é não apenas responsável por algo que diz da não-relação, mas também é aquele que introduz um artifício, um savoir-y-faire. Com o artifício e o savoir-y-faire, entramos no campo do que Lacan denominou sinthoma.

Para concluir, retomamos questões formuladas antes: em que pontos nós como analistas aderimos e em quais outros nos desconectamos de nossa época? De que modo somos inatuais? A psicanálise é contemporânea? De quem e de que ela é contemporânea?

Para abrir algumas possíveis respostas, lembro com Miller (2013) que, ao se referir à identidade sinthomal do falasser, produzida mais além das escórias herdadas do discurso do Outro, Lacan localiza na identificação com o ser de sinthoma a presença de certo tipo de distância. Essa distância, que ele coloca entre aspas, indica que há um percurso do inconsciente ao sinthoma. Miller observa que não se trata de que alguém se apresente de saída, sem mais nem menos, em seu ser de sinthoma. Isso acontece, mas justamente quando acontece não há distância, e, portanto não se pode fazer nada com isso. (MILLER, 2013, p. 140-141) Então, é ao introduzir certo tipo de distância na identificação ao seu ser de sinthoma que o falasser abre a possibilidade de poder fazer algo com isso, de saber se virar com isso, de poder se fazer e se refazer aí.

De modo inusitado, concluiríamos que aí, e somente aí, nos tornaríamos contemporâneos?


Notas

[1] Este texto, originalmente intitulado “Contemporaneidades”, foi apresentado no Congresso dos Membros da Escola Brasileira de Psicanálise, realizado nas dependências do Museu Inhotim, em Brumadinho (MG), em abril de 2017.

[2]A palavra em alemão é Besticht, do verbo bestechen, que significa subornar, corromper. Bestechung é corrupção.

 

Referências

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.

ARAÚJO, L. Lendas urbanas: o teaser-graffiti – A verdade sobre Lerfá mú x Celacanto. Disponível em: <imaginetix.blogspot.com/2011/04/>. Acesso em: abr. 2017.

BARROS, R. R. Os azulejos de depois. Disponível em: https://omalentendidodocorpo.wordpress.com/2015/07/06/linda-do-rosario. Acesso em: abr. 2017.

BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: ___. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BROUSSE, M.-H. L’objet d’art à l’époque de la fin du beau. Revue de la Cause Freudienne, n. 71, jun. 2009.

FREUD, S. Escritores criativos e devaneio. In: ___. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972.

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LACAN, J. Le Malentendu. Ornicar? n. 22/23, p. 11-14. Pronunciado em 10 de junho de 1980.

___O seminário, livro 23: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

___O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.

___O seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

___. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: ___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

LAURENT, E.; BRODSKY, Graciela. Colóquio-Seminario sobre El Seminário 23 de J. Lacan El Sinthome. Colección Orientación Lacaniana. Buenos Aires: Grama, 2007.

MARTINEZ, R. G. O mal-entendido do corpo e o Três Pequenas Mortes de Adriana Varejão. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 72, mar. 2016.

MILLER, J.-A. Inconsciente y sinthome. In: ___. El ultimíssimo Lacan. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013.

___Piezas sueltas. Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2013.

MONTEIRO, C. O que dizer do savoir-y-faire de Adriana Varejão? (Inédito)

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RUBIÃO, L. Sublimação e final de análise. Disponível em: revistaderivasanaliticas.com.br/índex.php/sublimação. Acesso em: abr. 2017.

VAREJÃO, A. Obras expostas no Museu Inhotim: “Celacanto provoca maremoto” e “Linda do Rosário”.

XAVIER, F. Psinoe. (Inédito)

 

Belo Horizonte, abril de 2017

 

 

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