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  • As comédias e o fluxo de vida que jorra do cômico

RUBIÃO, Laura Lustosa. A ética do bem-dizer nos estudos lacanianos sobre a comédia. Ed. UFMG, 2014. 270 p.

 

Márcia Rosa

 

Parabenizo Laura Rubião por este trabalho de “resgate da importância da dimensão cômica do desejo na psicanálise por meio da leitura de peças de teatro”, em especial aquelas da Comédia Antiga. Tal resgate nos faz pensar que a leitura das peças cômicas e, em especial, aquelas de Aristófanes, bem poderia ser acrescida à lista de disciplinas consideradas como importantes na formação do psicanalista. Freud incluía aí a história da civilização, a mitologia, a psicologia das religiões, a história e a crítica literária. A elas Lacan, no seu texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise,[1] diz ser interessante acrescentar: a dialética, nos Tópicos de Aristóteles, a gramática e a poética, incluindo-se aí a técnica do Witz e a retórica.

Observamos que nos anos 1970, com seu Lituraterra[2] e suas “nuvens significantes”, bem como com sua referência a Aristófanes, Lacan se refere à comédia e, em especial, à Comédia Antiga. No entanto, ele já fazia um elogio ao cômico, à saída clínica pela via do cômico, nos anos 1959-1960 ao tratar a ética da psicanálise.[3] Se, na leitura das tragédias Lacan encontrou elementos para fazer face aos desvios dos pós-freudianos e para propor o seu retorno a Freud, a partir do final dos anos 1950, com O seminário, livro 7: a ética da psicanálise, ele nos forçou a diferenciar o percurso de um trabalho psicanalítico daquele de um herói trágico e, com isso, recolocou em pauta o cômico.

Ao ler este livro e acompanhar a brilhante argumentação de Laura Rubião, o leitor provavelmente se descobrirá desejoso de fazer uma incursão nas peças do escritor clássico, Aristófanes. Depois dos comentários sobre o polo das aves, ver-se-á tentado a entrar no texto do clássico escritor de comédias pela peça As aves, cujo enredo nos traz esses dois atenienses decididos a abandonar a vida urbana. Diante do modo de vida das aves, se decidiram a construir uma cidade aérea na qual se propunham a “medir o ar com réguas e compassos”. A essa peça, suceder-se-ia a leitura de Acarnenses, na qual Diceopólis, o pacifista, defende o ato descabido de fazer a trégua com o inimigo uma vez que o fato que desencadeara a guerra era ínfimo. Como muito bem mostram os interessantíssimos comentários de Rubião, esse personagem nos encanta pelo bom uso dos semblantes.

Ao seguir, guiados pelas mãos de nossa eximia escritora, ficamos bastante atentos para a questão suscitada pelos tipos cômicos quando não fazem um tipo, mas mostram-se (a)típicos. Destaca-se, então, a sua postura de anti-heróis, ou de heróis de uma cotidianidade que provoca um vacilo e uma ruptura nos semblantes instituídos, fato já apontado desde a escolha de seus nomes-próprios, “Dissolvetropa”, “Bom de Lábia”, etc. Se o trágico nos põe em contato, de algum modo, com o extraordinário, o cômico parece trazer à baila o que é, aparentemente, ordinário. Nesse sentido, a discussão sobre o caráter (a)típico do herói cômico mostra-se interessante e, além disso, bastante atual, uma vez que reconhecemos na nossa contemporaneidade casos clínicos que primam exatamente pelo seu caráter discreto e ordinário, em contraposição àqueles que, pelo seu caráter extraordinário, mostram-se mais próximos de heróis trágicos tais como Édipo, Antígona, etc.

De um modo geral, cada um dos capítulos do presente livro tem seu encanto e seu charme próprio. No capítulo inicial, trata-se de “rir do inimigo, mas onde está mesmo o inimigo?”: vemos aí o eixo imaginário tratado pelo simbólico! A escritora nos entusiasma ao trazer Jean Genet e a erotização da relação simbólica para tratar do falo em cena, no capítulo seguinte. Já no terceiro capítulo, com o grotesco e a ruptura dos semblantes, o “isso calça as botas da linguagem”. Segue-se um contraponto entre o extraordinário e o ordinário, no qual “a separação do objeto que preside a satisfação” produz o (a)típico. Para finalizar, somos levados a considerar um revezamento entre o cômico e o analista, revezamento que dá dignidade ao analista e/ou ao cômico. Conclui-se que o psicanalista e o cômico jogam com o domínio do parecer e que, para ambos, a não proporção sexual fica posta.

Se, enquanto leitores, somos despertados pelo tema, pela argumentação, pelo estilo cativante de escrita, o livro com o qual Laura Rubião nos brinda prima pela excelência também no modo como faz a articulação entre a literatura e a psicanálise. Quanto a isso, não se trata de moldar a leitura da Comédia Antiga às prerrogativas teóricas da teoria psicanalítica, mas de captar psicanaliticamente os efeitos da leitura de comédias, de depreender os impactos do texto poético sobre a teoria psicanalítica. No campo metodológico, observo ainda a presença de excelentes notas que orientam o leitor quanto ao léxico psicanalítico ou que o colocam a par de debates contemporâneos, como aquele que discute a existência ou não de uma vocação para o cômico na cultura brasileira. Acrescente-se a isso um modo inusitado, um estilo bastante pessoal ao apresentar e tratar noções um tanto densas no campo da psicanálise, tal como aquelas de falo, ou mesmo a leitura de clássicos como o é o texto de Lacan, Lituraterra.

Antes de finalizar, observo que no decorrer do presente livro a prescrição da leitura de comédias é feita preferencialmente para o psicanalista. Salvo o comentário da Tutameia, de Guimarães Rosa, em exergo, “R/uso int.o”, é o psicanalista quem “reveza com o cômico” e, pode-se supor ser na travessia que o leva da posição de psicanalisante à de psicanalista que surge contingencialmente o hábito da leitura de peças cômicas. Se o neurótico leva muito a sério e sofre pelos (ou com) seus semblantes, ao fazê-los vacilar, ou melhor, apenas ao suportar que eles vacilem, ele suportaria o cômico à la Witz”!

A propósito, é interessante anotar que no seu texto de 1927, O humor, Freud observa e comenta o fato de que “nem todas as pessoas são capazes de atitude humorística” e, nem mesmo de uma “fruição no prazer humorístico”. Ele chega a atribuir valores agalmáticos a essa disposição: “um dom raro e precioso”![4] Depois de acompanharmos Rubião no seu percurso pelo cômico, pensamos tratar-se aí menos de um talento herdado do que da produção contingencial do (a)típico.

Em que pese a importância dada ao Witz em 1905 e, depois, retomada com nuanças no texto de 1927 sobre o humor, curiosamente a leitura de comédias parece ter sido um hábito ao qual Freud se furtou. A que se deveria essa desconsideração? Questão de gosto? Ou questão da subjetividade de seu tempo, marcado pela guerra e, epistemicamente, pela premência em formular noções tais como aquela de pulsão de morte?

Ao partir da oposição construída por Freud entre o prazer e o gozo, entre a vida e a morte, Lacan pôde insistir no “fluxo da vida” que jorra do cômico. Uma questão se insinua aqui: na medida em que é leitor de comédias, ele retifica em algum ponto ou de algum modo a teoria freudiana, não aquela do Witz, mas aquela do humor? Essa retificação ter-lhe-ia dado passagem para a construção de uma teoria dos afetos no campo das virtudes, tal como ele a apresenta em “Televisão”?[5]

Para tratar dessas e de muitas outras questões, nada melhor do que nos deixarmos guiar por Laura Rubião neste interessantíssimo livro – A ética do bem-dizer nos estudos lacanianos sobre a comédia.

 

Derivas analíticas agradece a Márcia Rosa por sua amável contribuição com este número da revista.

Márcia Rosa é psicanalista membro da EBP-AMP e professora adjunta da FAFICH-UFMG. Ela é autora de Fernando Pessoa e Jacques Lacan: constelações, letra e livro (Ed. Scriptum, 2011).

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Notas

[1] LACAN, (1953) 1998.

[2] LACAN, (1971) 2003.

[3] LACAN, (1959-1960) 1988.

[4] FREUD, (1927) 1996.

[5] LACAN, (1970) 2003.

 

Referências

 

FREUD, S. O humor (1927). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 165-169. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 238-324.

LACAN, J. Lituraterra (1971). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 15-25.

LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

LACAN, J. Televisão (1970). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 508-.543.

 

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