ENTREVISTA COM BÁRBARA COLEN

 

“O CORPO NÃO SABE QUE É FICÇÃO, essa é a frase que extraímos como título do bate-papo realizado com Bárbara Colen, mineira de BH, que dividiu conosco a experiência como atriz no filme Bacurau, lançado em agosto de 2019. Bárbara já participou também de premiados filmes como Aquarius, Baixo Centro, No coração do mundo e Breve Miragem de Sol. Arte, interpretação, corpo e imagem são elementos que nos envolveram neste encontro.

 

 

Derivas Analíticas – Bárbara, nós da psicanálise temos afinidade com o filme Bacurau porque a presença de um resto ali. Resto, pedaço, enigma, avesso... coisa subterrânea, enterrada. Essa é a característica do filme que mais nos interessa. Pode-se dizer que se trata de uma narrativa que não visa uma mensagem, nenhum grande sentido: apenas um monte de pedaços e esses pedaços parecem interpretar o espectador.

 

Bárbara Eu lembro que na primeira vez que eu vi Bacurau, em Cannes, eu também não entendia muita coisa do filme. Considero que realmente o assisti em Gramado, pois foi quando eu mais acompanhei a história. Mas mesmo assim fiquei com a sensação de ser um filme esquisito, estranho. É difícil pra mim pensar na mensagem de Bacurau, fico pensando se há mensagem.

 

Derivas Analíticas Parece que o filme é um marco histórico contemporâneo. Você disse ter tido a impressão de ser um filme esquisito e é essa estranheza que nos interessa. Percebemos que as pessoas ficam atravessadas e impactadas pelo filme, mas ninguém consegue ou sabe dizer muito sobre ele. Talvez seja por essa ausência de mensagem à qual você se refere. Parece que não há afeto em jogo.

 

Bárbara – Quando li o roteiro de Bacurau pela primeira vez, não entendi nada. Fiquei pensando: que personagem que é essa, Teresa? Ela abre o filme, mas no roteiro sua fala some a partir da página 50. Onde está Teresa? Não tem mais Teresa. E de certa forma, nenhum personagem tem um curso subjetivo muito claro. Por exemplo, ninguém sabe de onde vem Lunga ou qual é a relação de Teresa com Pacote. No entanto, não é um filme frio. E isso é muito um enigma pra mim, pois ouvi pessoas falando que saíram do cinema com vontade de vomitar, ou com náusea. O filme provoca efeitos físicos no espectador. Trata-se de um filme que não tem subjetividade dos personagens, mas ao mesmo tempo as pessoas estão afetivamente ligadas a eles, elas não se distanciam daquela história.

 

Derivas Analíticas – Sim, as pessoas ficam afetadas pelo filme.

 

Bárbara – Eu vi o filme três vezes e fui a várias pré-estreias. Há ocasiões em que prefiro não o assistir, pois saio muito tocada. Até hoje não entendo o que acontece comigo e me pergunto a razão de esse filme me deslocar tanto. Já saí de exibições aos prantos. Chorava insistentemente ao final, na cena das enxadas, sem entender a razão. Da última vez, acho que em Recife, vi a cena da escola em que os habitantes da cidade se defendem, na qual tenho uma arma na mão e todas as crianças estão deitadas nas carteiras, e pensei, afinal, quanto disso eu realmente vivi? Naquela cena, estavam eu, os figurantes da cidade, as crianças que eu já amava, todas agachadinhas chorando – e os tiros e efeitos sonoros acontecendo. Por mais que seja ficcional, o corpo não sabe que é ficção.

 

Derivas Analíticas – É isso!

 

Bárbara – O corpo não entende nada! Até você explicar pra ele "Ah não, isso aqui foi de mentirinha", você já está com as vísceras reviradas, está passando mal. Por isso é que às vezes nós, atores, perdemos a sanidade! Porque existem coisas que você realmente sente, apesar de aquilo ser ficção. Então, fica a pergunta sobre a desimersão dos processos. Isso ainda é misterioso pra mim. Por isso acho que não é possível o filme ter ficado frio, porque ele não foi feito de maneira fria, sabe? Foi um filme que mexeu muito com as afetividades de todo mundo que estava lá. E a energia criada em cada filmagem era muito potente. Há um dramaturgo que se chama Mikhail Chekhov que discute a questão da atmosfera do set. Referindo-se ao teatro, ele pontua que a partir do momento em que os atores conseguem estabelecer uma atmosfera, eles têm que fazer muito pouco, porque se pega o que está ali, da energia daquele coletivo. E eu acho que em Bacurau isso aconteceu muito. Ao falar nisso eu arrepio, pois era assim, como por exemplo na cena das crianças. As pessoas no meio do mato, no sertão, emitindo algo do medo, é muito palpável, sabe? Então, de forma alguma o filme saiu frio. Acho o Kleber Mendonça um diretor muito curioso, pois traz uma frieza para os filmes, já que seus personagens são estranhos. No entanto, é um diretor muito sensível e afetado com tudo que vive.

 

Derivas Analíticas – Esta edição da Derivas aborda a questão da imagem e você começou a falar alguma coisa disso quando mencionou que o set modificava, de alguma maneira, o seu corpo. Parece que podemos recortar algumas imagens que, de certo modo, orientam um pouco a narrativa do filme. Elas não necessariamente portam uma mensagem, no sentido de um significado, mas que, às vezes, indicam alguma coisa, apontam. Essas imagens são chamadas pela psicanálise de orientação lacaniana de imagens rainhas. A partir disso, perguntamos quais imagens você recortaria como sendo imagens que dominam, determinam ou governam Bacurau?

 

Bárbara – O que me vem na cabeça são as imagens das cabeças colocadas no patamar ou a aparição de dona Carmelita no final, com o povoado todo atrás. Eu gosto muito da cena do caixão com os rostos atrás. Não sei se vocês já prestaram atenção nos figurantes, mas nessa cena há um senhor negro, e considero que ele é uma entidade! As tonalidades da negritude naquele frame são muito fortes do Bacurau. Outra imagem seria a da capoeira, pois são os corpos em luta! É o momento em que você vê os corpos das pessoas de Bacurau lutando, porque não vemos muito a resistência de Bacurau. E o momento da capoeira é o encontro daquelas pessoas que estão se preparando pra guerra. A luta que os diretores te permitem ver é aquela da capoeira. Há também a cena da janela com as pessoas atirando ou a cena do Lunga, mas ninguém vê Lunga realmente. Ou seja, são só os flashes de violência. A capoeira é a cena da luta.

 

Derivas Analíticas – E da sua experiência no filme, qual seria a imagem rainha?

 

Bárbara – A imagem da minha experiência não entrou no filme. Era um final que não teve. Mas era a da Teresa com sangue escorrendo sobre sua cabeça e ela olhando para o infinito ou para uma barragem, e o sangue escorrendo na cabeça dela. E o espectador sem saber muito bem o que aconteceu. Para mim, essa seria a grande imagem de Bacurau, mas ela não entrou.

 

Derivas AnalíticasVocê disse que o corpo não faz distinção entre ficção e realidade. Em sua experiência, quando o corpo é atravessado?

 

Bárbara – Eu acho que não é um processo muito racional e posso dar um exemplo: na cena em que Udo Kier chega falando "amigo, amigo, Tony JR, amigo", eu estou atrás. Meu corpo estava lá atrás, Teresa estava vendo aquela cena. Mas o Tardelli, o ator que fez o Tony JR, e o Udo entraram em uma sincronia tão forte que me lembro de meu corpo tremer. Não era uma cena em que eu estava fazendo algo específico e tinha plena consciência de que meus colegas estavam interpretando. Há uma intensidade da violência, do verbal naquela cena que realmente me atravessou. Aquela cena que não entrou, a do sangue, foi um dia muito curioso também. Era o último dia de filmagem, eu já estava exausta, e logo antes de terminar o Kleber me avisou que faria um close meu para ser usado na última cena do filme. Ele falou: "Ah, eu queria você chorando...". Filmamos a cena toda, era o final do dia e eu pensei: “O que vou fazer?”. Dois minutos depois, tinha uma câmera na minha frente, a equipe toda reunida em volta e eu lá parada, olhando pro infinito. Me concentrei em chorar, mas quando começaram a filmar e derramar o sangue, o sangue escorria e eu não consegui chorar. Aquilo durou uns quatro minutos, mas eu achei interminável. Quando a cena foi cortada, meu joelho falhou, eu caí num pranto absurdo, comecei a chorar, soluçar. Quando olhei, todo mundo da equipe estava chorando em volta. Eu não entendo o que estava se passando, não sei o que foi aquilo, meu corpo estava completamente desgovernado. Mas eu acho que havia acúmulo de tudo, de tudo que você vai vivendo do calor, do calor no sertão...

 

Derivas AnalíticasVocê falou da frieza. Deve ser impossível algo gravado no sertão ser frio!

 

Bárbara – O corpo vai acumulando muita coisa e captando muita coisa do coletivo, sem ser racional. Acho que esse processo é muito legal. E é muito bom quando você está relaxada o suficiente em um processo criativo para não barrar as reações do corpo. Quando você está em um processo que te deixa à vontade, esses efeitos, essas coisas corporais vão vindo. E estão ali compondo junto, porque tem coisa que a gente não explica. Atuar para mim é meu momento de espiritualidade, são momentos muito curtos. Foi atuando que consegui total integração entre a mente e o corpo. Sensação de estar tudo em uma coisa só, tudo em um momento só.

 

Derivas Analíticas Lacan fala que por não sermos o nosso corpo, só nos resta tê-lo, portanto é preciso encontrar meios para se apropriar desse corpo que insiste em escapar. Ele fala também que a dança é o que permite uma maior apropriação do corpo. Mas nessa experiência da qual você fala,  também uma conexão com o corpo, não é?

 

Bárbara – Eu não consigo separar uma coisa da outra. Inclusive me lembro da filmagem de Breve miragem de sol, filme que vai estrear em breve. Em uma gravação, eu estava na frente de um pronto-socorro na Zona Norte do Rio, eram quatro horas da manhã, estava chovendo e eu tinha que esperar o táxi vir para começarmos a cena. E eu estava bloqueadíssima, cansada. A coisa não ia, a cena não estava acontecendo. De repente, me deu um clique que eu falei – é só você ser o que está sendo nesse momento, um corpo cansado debaixo de chuva em frente a esse hospital. Vi os mendigos que estavam ao redor, uma ambulância chegando, um traficante algemado em um camburão de polícia. Meu corpo estava ali e foi quando a cena aconteceu! A ideia é aceitar o que você está sendo na hora, sem entrar no que a personagem tem que fazer. Seguir o corpo do jeito que ele está.

 

Derivas Analíticas – Você não tem que ser um reflexo da ideia da personagem. Como você pode ser tão você naquele momento, interpretando outra personagem?

 

Bárbara – (gargalhada) Isso é maravilhoso, não é? É um enigma! Porque isso para de ser algo que é distante de você, é sempre a gente. É uma coisa que eu fico pensando muito: qual é a linha entre eu e o personagem. No processo de construção do personagem há uma preparação. Dessa forma, em cada processo acho que já não é a mesma Bárbara. De acordo com os filmes, vou mudando. No mundo das ideias do Platão há uma Ofélia. Eu corro para chegar atrás dessa Ofélia, mas Ofélia vai ser o que meu corpo permitir. Essa Ofélia será a minha Ofélia, Ofélia-Bárbara que passa por todos os filtros dessas vivências e do que é possível ser ali, naquele momento. É muito difícil, mas, por outro lado, quando leio o roteiro, sinto o que é essa personagem, já sinto uma presença. É meio metafísico, mas, lendo a Teresa, pensava: esse lugar do cérebro (testa) é a Teresa.

 

Derivas Analíticas – Então, voltando a ela, chama muito a atenção o silêncio de Teresa. Queremos te ouvir sobre a experiência dessa personagem, ela é silenciosa e muito presente, como uma testemunha, mas sempre se posiciona de maneira muito...

 

Bárbara – Assertiva! Muito curioso isso, porque como atores temos a tendência de querer falar.

 

Derivas AnalíticasBacurau não é o filme da fala, é o filme da imagem.

 

Bárbara O Udo Kier me falou uma coisa que ficou na minha cabeça. Ele disse que ator fica disputando fala e no cinema o que importa realmente são os pequenos gestos. O que fica é o gesto, o fazer mínimo. A fala é bobagem. Eu penso muito numa questão sobre a imagem: quando você é ator, está tentando passar a imagem para o outro. Estamos sempre lidando com a imagem. Então, por exemplo, se no teatro eu falo: "Lembro da minha infância quando eu vi a minha camisa vermelha estendida no varal", eu preciso ver essa camisa vermelha estendida internamente, senão o público não vai conseguir ver essa camisa! É necessário estar o tempo todo construindo uma imagem interna e isso é da ordem da subjetividade, não é possível verbalizar. Mas se a pessoa não estiver vendo nada, é vazio. Há esse trabalho no cinema. O ator tem que construir imagens internas para poder passar o que está passando dentro dele e o cineasta capta essas imagens que serão icônicas do filme. Acho que Bacurau tem muito disso, acho que Teresa vai conduzindo o olhar do espectador, sabe? Ela comenta as coisas que estão acontecendo, conduz tudo porque é quem está vindo de fora, ela precisa apresentar Bacurau, através daquele olhar.

 

Derivas AnalíticasE a personagem Carmelita, que não fala nada e cuja imagem é tão forte?

 

Bárbara – Eu acho que a Carmelita é Bacurau, não consigo vê-la de outra maneira. Acho que ela é um símbolo, um símbolo feminino da ancestralidade daquele povoado. Quando Teresa chega, Carmelita está morta deitada na cama. Eu vi Lia – de Itamaracá, que interpreta Carmelita – deitada na cama com aquela roupa branca, os búzios na mão e eu não conseguia parar de chorar. Penso que ela tem algo do corpo muito telúrico, ela é da terra. É a avó no lugar de Bacurau e eu acho que a Teresa vem como uma sucessora desse modelo do feminino. Pois Teresa não vem para ficar e depois decide ficar. Há em Bacurau o que é o entendimento do que é necessário de ser feito, independentemente das justificativas racionais.

 

Derivas Analíticas – Você falou da avó como símbolo feminino. O feminino em Bacurau é fortíssimo, até mesmo na presença masculina. Começando pelo corpo de Lunga, que é todo construído e visto pela primeira vez através do espelho. Lunga não é homem, nem mulher, nem jagunço, mas ao mesmo tempo é tudo isso. Por que essa figura trans?

 

Bárbara – Acho que foi um desejo do Kleber e do Juliano de que o herói de Bacurau não fosse um masculino clássico. Acho inclusive que nem Pacote ou Plínio sejam. A princípio, o personagem seria uma mulher trans mesmo. Mas os diretores encontraram o ator Silvero, conversaram com ele e decidiram que Lunga seria o que ele quisesse. Em nenhum momento os diretores influenciaram na maneira como o Silvero ia compor. Silvero costuma se travestir, em Cannes ele estava totalmente travestido, mas em Lunga ele mistura tudo. Eu acho muito importante termos a figura de Lunga agora, pois isso diz muito sobre o que está acontecendo na nossa sociedade. As pessoas mais resistentes, com mais fúria, são muitas vezes os trans, os negros. Vejo em Silvero um homem duro, assertivo, um sobrevivente. Ele entende o espírito dessa guerrilha urbana que vivemos. Então ao ver Silvero, entendi algo de Lunga.

 

Derivas Analíticas – De alguma maneira, Lunga é uma imagem, uma condensação de todas as imagens do filme. Ele é mulher, é homem, é o guerreiro, é o protetor da água, é quem escreve bem, é o cangaceiro. Voltando à questão do feminino e da Teresa, parece que ela é a neta preferida. Teresa entra como uma espécie de mulher que carrega uma substância no filme. Ela chega com a água, é a primeira a ganhar aquela sementinha, a que está levando as vacinas, a que porta uma substância. O que essa personagem da Teresa, com suas características, poderia trazer algo de novo sobre a imagem do feminino?

 

Bárbara – Eu gosto muito da imagem da Teresa chegando com uma mala em Bacurau. É uma imagem simples, de uma mulher sozinha que viaja com uma mala vermelha, que chega em uma cidade deserta. Pode parecer muito pequeno, mas acho que essas coisas trazem possibilidades do corpo feminino. Em trânsito. Teresa está com o jaleco, que é um sinal de proteção, dentro desse caminhão, e carrega consigo coisas. Então, isso fala da mulher que transita, que é diferente do que estamos acostumados a ver. São sempre os homens que têm o corpo possível, livre pra transitar, para ser. A personagem Luciene [aquela que perde o marido, que chora muito] e a Teresa são as que comentam sobre como Bacurau está sofrendo. No rosto da personagem da Luciene vê-se a fragilidade do povoado. E o rosto de Teresa mostra que a comunidade faz o que não quer, mas o que é necessário. Como feminino, o que acho que Teresa traz para nossa possibilidade de mulher, ou de construção imagética do que é possível de ser mulher, é um lugar de uma independência e de uma ação. Geralmente, as mulheres são colocadas no lugar de passividade, são as que recebem, que acolhem. Então, quando vejo Teresa com aquela arma na mão atirando, quando a vejo respondendo àquela pergunta: "Você não acha que aqui Lunga exagerou?”, “Não. Não exagerou, era isso que precisava ter acontecido.", quando ela diz que vai ficar, quando traz a assertividade por meio de decisões, acho que traz alguma coisa do feminino, que está presente o tempo todo por meio de decisões na sociedade. São as mulheres na sociedade que representam a ação, que definem o tempo todo. Eu acho que Bacurau traz essa mulher que anda, que age e tal, é o que a gente precisa agora. Já é o que nós somos.

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