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logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-263

 

Considerações sobre a necropolítica e o feminino

 

Bárbara de Faria Afonso
Psicanalista
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A constituição da civilização implica em diversas formas do mal-estar, sendo a mais desafiante os laços sociais. Desde Freud (1921/2006), já se sabe que toda psicanálise individual é também do social, e que não é possível pensar a cultura sem a pulsão de morte, a segregação e seus efeitos do pior.

O termo necropolítica foi cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe (2016) para fazer novo giro na construção foucaultiana de biopolítica que implicava na máxima “fazer viver e deixar morrer”. Foucault (1975-76/2005) cunha o conceito de biopolítica para afirmar que há um poder político em torno da vida e da morte, pelo qual a medição das populações em seus índices de natalidade, mortalidade e taxas estatísticas e demográficas de doenças, envelhecimento, são alvos de controle da vida. Mbembe (2016) enfatiza como a gestão da morte separa aqueles considerados humanos e aqueles considerados inumanos e descartáveis. A necropolítica constitui formas de o poder gerir segregando e decidindo quem pode viver, quem deve morrer e quem é passível de luto. É importante, portanto, questionar como é possível existirem formas de se governar mediante a produção da morte e de cadáveres. Essa forma do poder operar implica o Estado, ilegalismos intrínsecos ao poder público, mas principalmente diversas formas do poder necropolítico se ramificar no tecido social.

A necropolítica é um conceito que está em constante atualização, Mbembe (2016) parte dos cenários históricos pós-coloniais que complexificam a lógica da biopolítica foucaultiana já que o Estado abre mão do monopólio da morte violenta para que esse se dissemine nos laços sociais, permitindo que se matem uns aos outros. Como consequência, temos vidas condenadas à não existência, a formas de morte em vida, ao controle de pessoas pela docilização dos corpos, operada pelos poderes disciplinares, e, ainda, em zonas de exclusão, podendo constituir caminhos em direção à violência e a morte. Esses alvos para a morte se apresentam direcionados àqueles a quem se destina o lugar de objeto resto. Há uma segmentação em marcadores como raça, classe, gênero, religião, povos, o que Mbembe (2014) nomeia como delírio das raças e o devir-negro-do-mundo. Há cada vez mais pessoas em zonas de exclusão nas quais são legitimadas formas de extermínio e assassinato. Sentença do Outro social da indiferença, violência ou morte, formas de desvalorização, negação do lugar de sujeito e de existência.

A necropolítica tem como produção inimigos, rancor, ódio, constituições de conflitos, atuações, guerras e estados de exceções nos quais há uma legitimação da morte devido a uma suspensão de direitos, o que faz da injustiça a regra.

Se podemos pensar que o conceito de biopoder implica o laço social, resta-nos a questão: como viver junto? Frente a esse desafio, Lacan (1973/2003) já havia previsto a escalada do racismo. O gozo de cada um é vivido como um estranho familiar, algo que não pode ser extirpado, uma vez que está desde a constituição do choque da língua com o corpo para o ser falante. Entretanto, Lacan (1973/2003, p.532) diagnostica que há o “desatino de nosso gozo”, um modo de gozar do Um como fundamento do ódio do Outro, do racismo do gozo do Outro, que é tomado como subdesenvolvido.

Lacan alerta: nas comunidades humanas sempre há rejeição de um gozo inassimilável, semente de uma possível barbárie (Laurent, 2014, s/p). Laurent (2014, s/p) afirma que a lógica coletiva é fundada na ameaça: “uma rejeição primordial, uma forma de racismo: um homem sabe o que não é um homem. E é uma questão de gozo. Não é homem aquele que rejeito como tendo um gozo distinto do meu”.

Foucault (1975-76/2005) dirá que as funções assassinas do Estado e a distribuição de morte se tornam possíveis e são reguladas pelo racismo. Mbembe (2014, p. 11) afirma que “os mundos euroamericanos fizeram do negro e da raça duas versões de uma mesma figura – loucura codificada funcionando como categoria material, fantasmagórica” e que “o negro é aquele (ou ainda aquele) que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender”. Nestas citações e, ainda, ao explanar que “raça e racismo fazem parte de processos centrais do inconsciente” (Mbembe, 2014, p. 65), podemos nos interrogar sobre uma possível aproximação com a psicanálise. Dessa forma, as violências suscitam inquietações e implicam em uma trama tanto subjetiva e pulsional, quanto política e social. Adentraremos em como a questão do feminino participa dessa discussão.

Para Freud (1905/2006), a sexualidade feminina sempre foi um enigma, “o continente negro da psicanálise”. Há sempre um impossível de se dizer sobre o sexo e sobre a morte. A partir do Seminário 20, podemos pensar, com Lacan (1972-73/1985), a tábua da sexuação, a qual outorga do lado feminino o gozo como suplementar e inominável. Ao real do sexo, somos conduzidos ao aforismo lacaniano “não há relação sexual”, ou seja, não há reciprocidade, nem complementariedade entre os sexos. Há um impossível de que dois façam Um. A posição do gozo fálico implica a castração e a noção de um conjunto constituído através da ficção de que haveria ao menos um que não seria castrado. Por outro lado, o gozo feminino participa do gozo fálico, mas, de forma não-toda, é um modo de gozo que escapa, disjunto e não é idêntico a si mesmo, testemunha esse impossível. Podemos aproximar desse ponto a colocação lacaniana de que “A mulher não existe”, ou seja, não há uma lógica de essência ou um conjunto das mulheres. Não há um significante que nomeie o feminino, e, nesse sentido, não existe A mulher, mas ex-siste o Heteros, como radicalmente apresentado no Outro sexo que a feminilidade dá corpo. Diante do impossível de se dizer e nomear do feminino, não estaria aí o motivo para seu horror e rechaço?

Em seu texto sobre agressividade, Lacan (1948/1998) indica que é possível pensar que, onde há cultura e civilização, há violência. O sujeito pode tentar eliminar no outro aquilo que não consegue integrar à sua própria unidade da imagem narcísica, implicando em uma rejeição absoluta ao diferente, ao heterogêneo. Quando o traço da diferença aparece como insuportável, a violência pode advir como forma de descarga na tentativa de rechaço ao feminino, como esse indizível, impossível de suportar do gozo Outro. Nos casos de violência contra a mulher e feminicídios, é possível pensar que as agressões ocorrem pelo horror diante da apreensão do gozo feminino como ilimitado e da impossibilidade de dizer. Em muitos casos de feminicídio, após o assassinato, o próprio sujeito se suicida, indicando o próprio objeto íntimo, infamiliar e estranho do gozo. A agressividade especular relaciona-se, portanto, à impossibilidade de integrar esse gozo, que escapa como um excesso sem bordas e se apresenta como alteridade.

Diante do problema do gozo e da segregação, Mbembe (2014), em Crítica da Razão Negra, recorda como o conceito de raça advém da lógica de animalizar o outro, construção ficcional útil para nomear as humanidades não europeias, implicando a degradação e uma diferença insuperável. Mbembe (2014) nos auxilia a compreender a questão do racismo a partir de uma reflexão sobre o nome “negro”, nome esse herdado do Outro, que vem como insulto por hábito, um nome que passou por um processo de coisificação, a ordem de se calar e não ser visto que se impõe pela trama do poder como sintoma ou destino. Dessa forma, desde o início, o nome “negro” implica uma ausência em relação ao mesmo, ao europeu tomado como homem e modelo. A nomeação “negra” só tem existência por um poder que a inventa em uma relação de submissão e indiferenciação, em um enquadramento no qual se projeta uma constituição do outro como alteridade, ameaça da qual é preciso se proteger. É nesse aspecto que se entrelaçam as noções de necropolítica e racismo:

A raça está por detrás da aparência e sob aquilo de que nos apercebemos. É também constituída pelo próprio ato de atribuição - esse meio pelo qual certas formas de infravida são produzidas e institucionalizadas, a indiferença e o abandono, justificados, a parte humana do Outro, violada, velada ou ocultada, e certas formas de enclausuramento, ou mesmo de condenação à morte, tornadas aceitáveis. (MBEMBE, 2014, p. 66)

Como sabemos, a “raça não existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético, trata-se de uma ficção útil, construção fantasista, projeção ideológica – caráter móbil, inconstante, caprichoso” (MBEMBE, 2014, p. 26-27). Assim, o significante “negro” é frequentemente preenchido por ficções, significados e projeções imaginárias do pior. O sujeito que tem um corpo negro aparece dessa forma como diferença radical, estranheza: “O Negro não existe, no entanto, enquanto tal. É constantemente produzido. Produzir o Negro é produzir um vínculo social de submissão e um corpo de exploração” (MBEMBE, 2014, p. 39, grifos do autor).

A partir dessa concepção do nome “negro” como ausência, desconhecido e alteridade, podemos aproximá-lo do feminino que, por sua vez, insiste como mistério e o que escapa à significação. Poderíamos nos perguntar, então, se não haveria certa equivalência entre as proposições “a relação sexual que não há” (LACAN, 1972-73/1985, p. 86), “A mulher não existe” (LACAN, 1972-73/1985) e “O negro não existe” (MBEMBE, 2014, p. 39). Essas inexistências, da relação sexual e d’A mulher, se apresentam a partir de uma significação que não cessa de fugir, que implica o inominável do gozo em cada um, do lado mulher na tábua da sexuação designando o que está por estrutura fora de lugar e exilado (ALBERTI, 2022), pois “o lugar da mulher [...] permanece essencialmente vazio” (MILLER, 2022, p. 18). A alteridade radical do feminino pode vir a suscitar a dominação, a possessão e a crueldade, pois a intolerância aspira sempre a anular a diferença entanto tal (HARARI, 2022). O ódio ao gozo que se coloca como diferente do meu é uma forma de deslocar para os outros essa disrupção da satisfação experimentada no corpo e localizá-lo como sendo alheia, tentando criar uma distância quanto ao que pulsa no mais íntimo de cada um. Esse ódio encontra-se também na base do racismo, tal como verificamos, por exemplo no Brasil, na banalização das notícias cotidianas de morte de pessoas negras. Ora, a psicanálise, ao contrário, na abordagem do feminino e do racismo, se vale e aposta na diferença absoluta do um a um, no que não faz conjunto, buscando clínica, quanto politicamente de dar lugar a cada um em sua alteridade.

Referências

ALBERTI, C. A mulher não existe. In: Scilicet: A mulher não existe. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2022.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 2006. (Trabalho original publicado em 1905).

FREUD, S. Reflexões para os tempos de guerra e morte. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XIV, 2006. (Trabalho original publicado em 1915).

FREUD, S. Psicologia de grupo e a análise do ego. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XVIII, 2006. (Trabalho original publicado em 1921).

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Trabalho original publicado em 1975-76).

HARARI, A. A menor mulher do mundo. In: Scilicet: A mulher não existe. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2022.

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).

LACAN, J. A agressividade em psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 104-126. (Trabalho original proferido em 1948).

LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 508-543. (Trabalho original publicado em 1973).

LAURENT, E. Racismo 2.0. Lacan Quotidien, n. 372, 2014. Disponível em : http://ampblob2006.blogspot.com.br/2014/02/lacan-cotidiano-n-371-portugues.html. Acesso em: 20 fev. 2024.

MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: N-1 edições, 2014.

MBEMBE, A. Necropolitica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2016.

MILLER, J.-A. Os semblantes entre os sexos. In: Scilicet: A mulher não existe. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2022.

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