Os desafios da adolescência

Resenha

 

DELTOMBE, Hélène. Les enjeux de l’adolescence. Paris: Michèle, 2010.

 

Lilany Pacheco

 

Ser um outro! Forma poética que antecipa a construção freudiana de que a puberdade implica atravessar um túnel cavado de dois lados, fazendo um furo em todo sentido encontrado pelo sujeito na cadeia de significantes da qual ele se servia até então. Enquanto no corpo acontecem as mudanças que anunciam a possibilidade de um ato inédito, o ato sexual, consuma-se, no lado psíquico, o encontro do objeto para o qual o caminho fora preparado desde a mais tenra infância. Como afirmará Bernard Lecœur no prefácio ao livro de Hélène Deltombe, esse é o momento da incidência do tempo sobre a estrutura de modo premente.

Como leitora de Freud e Lacan, Deltombe enfatiza o tempo da adolescência (já conhecido por nós como sintoma da puberdade), um período traumático que interroga os pais, os professores, as instituições, além dos praticantes da psicanálise. As referências a Freud elencam as respostas aos traumatismos a ser inventadas pelos adolescentes para atravessar com sucesso esse período arriscado de sua existência.

O eixo central do trabalho de Deltombe se desenvolve a partir da constatação de que se, nos primeiros estudos sobre a adolescência, estava em questão o que Freud chamou de “desligamento da autoridade dos pais”, tratado pelo slogan “matar o pai”, nos dias de hoje, a adolescência não se caracteriza mais como uma revolta contra o pai, dado o declínio da autoridade paterna constatado por Lacan nos anos 1930, em Complexos familiares.[1]

Diante do declínio da “autoridade dos pais” e suas consequências simbólicas, os adolescentes se referem hoje menos às gerações precedentes e mais a seus pares, pelos mecanismos de identificação, através dos quais se pode falar dos sintomas do laço social, que dão aos adolescentes um sentimento de pertinência a uma comunidade, a ilusão de partilhar um ideal, de lutar contra um individualismo. Entretanto, isso não se passa sem percalços.

A autora adverte para a possibilidade de a estruturação pessoal ser perturbada sob pena de os sintomas serem reduzidos aos índices de pertinência a uma classe social, uma idade, por exemplo, em lugar de revelar um chamado a se fazer uma escuta de um sofrimento íntimo, que sempre foi um sintoma. Desse modo, tornar-se adulto supõe a resolução de sintomas para assumir plenamente o status de sujeito, não ser objeto de circunstâncias, dos acontecimentos ou da decisão de outros, ponto a partir do qual se situam os desafios a ser enfrentados pelos adolescentes.

Assim, ao ultrapassar, podendo se servir do laço social e de suas determinações, cada adolescente precisa descobrir os laços possíveis entre real, simbólico e imaginário para viver uma sexualidade que não coloque em risco a realização de si mesmo enquanto sujeito que se constitui pela sua relação com o inconsciente e suas relações com a linguagem.

Wo es war soll ich werden, expressão freudiana traduzida por Lacan como “lá onde isso era, devo advir”, será, pois, o modo como o sujeito se incluirá no circuito pulsional, localizará o modo de gozo que ele poderá colocar em palavras, mesmo através de seu silêncio, na presença de um psicanalista.

Ancorada em Freud, em seu terceiro ensaio sobre a sexualidade intitulado As transformações da puberdade,[2] Deltombe situa em sua pesquisa os desafios dos adolescentes diante do encontro com o objeto da fantasia. O destaque recai sobre as vicissitudes da repartição da libido para o menino e para a menina, de modo a situar seus problemas, suas dificuldades e a formação de sintomas daí decorrentes.

Os escritores criativos[3] oferecem suas construções de personagens cujos papéis dão lugar a soluções que permitem verificar o modo como respondem ao desejo materno, ao sentimento de incompreensão, aos apoios encontrados por eles, à incomunicabilidade, ao encontro com uma mulher, à divisão subjetiva entre a mãe e a mulher, ao sintoma do par parental, à descoberta de seu destino e à queda das identificações, bem como a relação ao inconsciente.

A apresentação do adolescente contemporâneo, neste livro, ganha seus matizes dado o Outro da época e o simbólico, que não é mais o que era. Como sabemos, desde Freud, as encruzilhadas frente ao real da puberdade são estruturais e atemporais. As saídas, entretanto, revelam, por sua vez, o tempo singular de construção devido às ferramentas disponíveis para o sujeito. A prática com adolescentes revela o tempo de construir em relação à estrutura e ao modo como o declínio do pai e as incidências na significação fálica e suas carências condicionam a construção de suas soluções sintomáticas.

Novas soluções, novos sintomas articulados ao laço social, uma socialização sintomática e a observação de que eles podem se converter em fenômenos de massa e até mesmo epidemias: alcoolismo (conhecemos as alcoolizações em grupo), toxicomania, inclusive a anorexia, a bulimia, a delinquência, os suicídios de adolescentes em série, etc.

Portanto, no trabalho de investigação de Hélène Deltombe se destaca essa noção de socialização dos sintomas dos adolescentes à qual Jacques-Alain Miller faz elogio, além de convidar os psicanalistas de orientação lacaniana a se deter nelas, uma vez que aí podemos reconhecer uma resposta autêntica do sujeito frente aos desafios da adolescência.

Lilany Pacheco é psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise-AMP.

________________________________________

Notas

[1] LACAN, (1938) 2003.

[2] FREUD, (1905) 1996.

[3] FREUD (1908 [1907]) 1996.

______________________________________

Referências

FREUD, S. Escritores criativos e devaneio (1908 [1907]). In: ______. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 135-143. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9).

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: III - As transformações da puberdade (1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 196-217. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).

LACAN, J. Os complexos familiares na formação do indivíduo (1938). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 29-90. (Campo Freudiano no Brasil).

 

Imprimir E-mail