A transferência, ainda, frente ao Um-sozinho

Sérgio Laia

 

Ao localizar a transferência como o investimento libidinal do analisante no analista e conceber o analista como quem, “nas condições” estipuladas pelo paciente para o amor, faz as vezes de um “clichê… repetido” e “reeditado”, Freud, em “Sobre a dinâmica da transferência”, de 1912, considerou o manejo da transferência determinante para que, embora tomado por essa reedição de clichês, “o caminho do analista” se efetive “como aquele para o qual a vida real não fornece um modelo”, como ele dirá, dois anos depois, em “Observações sobre o amor transferencial”. Por sua vez, no seminário inaugural de sua Escola ‒ marca de uma nova forma de se conceber e praticar tanto os laços entre os analistas quanto a formação concernente a cada um ‒, o seminário 11, de 1964, Lacan tematizou a transferência como um dos “quatro conceitos fundamentais da Psicanálise”. Todavia, conforme nos ressalta Miller, é também Lacan que faz da transferência “a ausente” de seu “ultimíssimo ensino, pelo menos nos Seminários 23 e 24”, na medida em que ela “supõe a construção da alvenaria (maçonner) do grande Outro” como determinante das coordenadas do “destino” de cada um, como ensina Jacques-Alain Miller em "En deçà de l’inconscient", de 2007.  

Se considerarmos, então, essas breves referências a Freud e Lacan, por que e, sobretudo, como a transferência interessa ainda à Psicanálise? Além de permear esse trajeto referencial, tal questão concerne à prática atual da Psicanálise porque – para averiguarmos algumas mutações quanto a esse conceito fundamental – é oportuna a relação destacada por Miller entre o envolvimento da transferência na construção da alvenaria do Outro e sua ausência no ultimíssimo Lacan.

Elucidar a insistência do interesse da Psicanálise pela transferência me pareceu determinante para situarmos a especificidade da Psicanálise no tema desta edição de Derivas analíticas. Afinal, ao tomar o laço que constitui uma “comunidade” não a partir de alguma “propriedade em comum”, mas de uma “falha original, que nos abre aos outros e da qual não podemos nos desfazer”, essa menção a tal falha, por um lado, pode evocar o desamparo primordial localizado por Freud como o que marca indelevelmente os humanos ou, ainda, o mal-estar que, também freudianamente, é tomado como próprio à cultura ou, por fim, se forçarmos um pouco, até mesmo o aforismo lacaniano de que a relação sexual, concebida como proporção entre os sexos, não existe.

Por outro lado, a Psicanálise me parece problematizar a concepção de que uma abertura aos outros se faz a partir do que se apresentaria como “falha” (original ou não) porque a dimensão autoerótica do gozo, que torna cada um uma espécie particular de Um-sozinho, fazendo valer a satisfação das pulsões, se imiscui justamente no que se abre nos corpos como essas falhas caracterizadas pelas “zonas erógenas” que são a boca, o ânus, as mucosas genitais, auriculares ou escópicas. Logo, como se processaria alguma abertura aos outros se essas aberturas no corpo fazem o gozo autorreferenciar-se, impor-se sempre como um “goza-se”? Ainda assim (e retomo aqui um outro aspecto do tema desta edição de Derivas analíticas), essa problematização psicanalítica quanto ao que nos abriria para os outros não significa que a Psicanálise defenderia, promoveria ou avalizaria a posição de que – desobrigados do “compartilhamento” – seríamos imunes aos outros. Sustento, então, que o conceito psicanalítico de transferência é decisivo para situarmos o diferencial da Psicanálise na temática abordada aqui por Derivas analíticas porque, se esse conceito é concebido por Freud como o investimento libidinal endereçado ao analista pelo paciente, veremos que – nesse endereçamento e, mais ainda, no manejo que o analista lhe imprime – algo diferente pode acontecer. Afinal, o Inconsciente, conforme nos ensina o Lacan do seminário 24, “é que alguém fala sozinho […] porque não diz nada do que uma única e mesma coisa” e, assim, deixa-se de estar tão só com tal gozo inconsciente e autoerótico, busca-se alguma saída do Um-sozinho, quando há uma decisão de ir “dialogar com um psicanalista”, mas não porque um analista seja um outro com o qual se interage ou se comunica, mas porque ele acaba ecoando, de modo diferente e surpreendente, esse único e mesmo dizer inconsciente.

Nos casos clínicos relatados por Freud, e também naqueles da clínica pós-freudiana, desde os mais detalhados até os mais curtos, a transferência é apresentada como amor e ódio endereçados pelo analisante ao analista. Para o manejo clínico desse investimento libidinal, Freud teve o cuidado de alertar aos praticantes da Psicanálise que acolhessem o afeto transferencial como verdadeiro, mas sem que se confundissem pessoalmente com o objeto amado ou odiado pelo qual eram tomados. Essa espécie de despersonalização freudiana da transferência se justificava não por uma frieza com o qual o analista foi confundido na clínica pós-freudiana e no que se difundiu genericamente como Psicanálise: ela foi o modo freudiano de fazer valer o real do investimento libidinal apresentado na condição amorosa ou odiosa que uma análise acabaria por extrair da trama da vida inconsciente de cada analisante, composta pelos primeiros objetos libidinais relacionados à “imago do pai […], da mãe ou do irmão”, como podemos ler em “Sobre a dinâmica da transferência”, de 1912. Valendo-se de esquecimentos, atos falhos, sonhos, lembranças, associações livres, ou seja, de elementos fugazes aos quais clínica alguma antes da Psicanálise jamais ousou conferir alguma dignidade, Freud nos mostrou como manejar a transferência para se reencontrar a alvenaria do Outro, determinante para a constituição do sujeito. Mas também já constavam para ele as falhas e os abalos do Outro, por exemplo, nas fantasias histéricas do pai humilhado, sedutor e ideal, na divisão da vida erótica obsessiva entre a mãe intocável e a prostituta sedutoramente ameaçadora, e nos delírios psicóticos de um Deus implacável e caprichoso.

Lacan, por sua vez, sustentou o retorno a Freud em um mundo psicanalítico no qual a relação analista-analisante passou a ser concebida como interpessoal e a transferência se viu reduzida a uma trama folhetinesca a ser reconduzida à chamada “vida real” unicamente pelo analista considerado, então, como senhor do próprio Inconsciente e, por conseguinte, melhor guia quanto ao Inconsciente do analisando. A despersonalização da transferência preconizada por Freud já era um modo de situar o analista como um “personagem” que, por uma ação inédita e inesperada, “descompletava” o romance familiar narrado pelo analisante e, por isso, Lacan a faz ressurgir nos pagamentos que Lacan incumbe ao analista efetivar: “pagar com palavras”, elevadas, pela transmutação realizada pela operação analítica, “a seu efeito de interpretação”; “pagar com sua pessoa” emprestada “como suporte aos fenômenos singulares […] descobertos na transferência”; “pagar no que há de essencial em seu julgamento mais íntimo”, para fazer valer “uma ação que vá ao âmago do ser”, como encontramos em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, de 1958. Mais ainda, Lacan deslocou o manejo freudiano da transferência da trama narrativa de tipo amor-ódio para a dimensão ainda mais despersonalizada e operativa de um jogo no qual caberia ao analista o lugar do morto que, no entanto, não deve ser confundido com a mortificação ou neutralização tão almejada pela clínica pós-freudiana. No baralho, várias vezes o morto anima as jogadas a terem uma sequência ou as cataliza rumo ao final e, assim, na clínica analítica, como também podemos ler em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, “os sentimentos do analista” (que a decisão de alguns pós-freudianos em favor da contratransferência passou, ao avesso de Freud, a valorizar) “têm apenas um lugar possível […], aquele do morto” que, ao ser reanimado, faz “o jogo prosseguir sem que se saiba quem o conduz”.

Porém, mesmo nessa mutação da forma-narrativa (e freudiana) para a forma-jogo, a transferência não deixou de ser um ingrediente na argamassa da alvenaria do Outro porque, nos termos mesmos de Lacan, embora o jogo prossiga sem qualquer saber sobre quem o conduz, tal ausência de saber não abala a suposição da existência de um lugar  – o do morto – que, como Outro em relação aos que compõem a partida analítica, seria responsável pelo prosseguimento desse jogo.

À despersonalização quanto ao endereçamento da transferência já sustentada pelo próprio Freud, acrescentou-se, com Lacan, o que eu chamaria de despatologização da transferência, ou seja, uma espécie de extração de seu envolvimento com paixões que conferiam aos relatos clínicos freudianos e pós-freudianos uma montagem próxima de um romance, uma peça de teatro ou mesmo um conto. Entretanto, essa despatologização lacaniana da transferência não extirpa os afetos das sessões analíticas, pois os articula ao que se supõe ou ao que se monta como suposição de saber. Ela me pareceu muito mais responder às mutações da transferência em um mundo que – diferente daquele no qual Freud sustentou sua prática – já havia sido surpreendido pela desmontagem da narrativa e das próprias formas consolidadas do romance, do teatro e do conto.

Os relatos clínicos freudianos não deixam de evocar, por exemplo, o Werther, de Goethe, o Despertar da primavera, de Wedekind, e os contos de Hoffmann ou de Schnitzler, todos compatíveis com a distância que o romance toma quanto às formas literárias que o antecederam, na medida em que, no enredo romanesco, não temos mais “histórias atemporais para refletir verdades morais imutáveis”, como esclarece Watt, em A ascensão do romance, de 1957. Assim, diferente das epopeias, fábulas, tragédias, comédias e outras formas literárias que o antecederam, o romance privilegia o que se passa com cada personagem em particular e, por sua vez, uma análise também visa ao que há de mais específico em cada um, ao que é efetivamente individual (no sentido do que literalmente não se divide, ou seja, não se compartilha). A experiência analítica (tanto quanto a forma literária do romance) não se faz, portanto, com relatos genéricos nem se finda com algo do tipo moral da história.

Porém, o que não se divide, nem se compartilha, o que toma a forma de Um-sozinho, deixa também de dar lugar a enredos, tramas e personagens. Assim, Lacan é pioneiro neste nosso mundo no qual a Psicanálise tem de se haver, cada vez mais, com os diferentes modos como um Joyce, por exemplo, abalou a composição de um romance, de um conto, de uma peça de teatro e de um livro de poemas, com o esgarçamento e até da destruição do que se apresentava como a alvenaria mesma do Outro. Já consolidada à época de Freud (que a vislumbrava como futuro diante das ilusões de cunho social e religioso), a ciência conheceu, no mundo de Lacan, ao mesmo tempo o fulgor e a angústia na medida em que, por exemplo, poder operar a fissão nuclear permitiu-nos o acesso inédito a uma energia que também foi responsável pelas bombas em Hiroshima e Nagasaki, a catástrofe de Chernobyl, o acidente com o Césio 137 em Goiânia…

Nesse contexto de desmontagem da narrativa, de esgarçamento da forma-romance e de decomposição de uma história, mas também de experiências de ascensão, de impasse e de angústia com as promessas e os feitos da ciência, considero instigante como Lacan renova o manejo e a própria forma de concebermos a transferência que os analisantes nos endereçam. Ele nos ensina, então, a tomá-la – mais além da ambivalência amor-ódio e da alvenaria do Outro – como referente ao Real que perturba as vidas e se apresenta ao modo de uma “atualização da realidade do Inconsciente” (segundo os termos do Seminário 11) ou, ainda, conforme lemos no Seminário 20, como “amor que se endereça ao saber” e ódio resultante da “de-suposição de... saber”.

A prática analítica em nossos dias, embora ainda permeável pelo que se supõe ou se deixa de supor quanto ao saber, parece-me mais esvaziada da paixão amorosa que se destacava, nos relatos clínicos freudianos, como transferência do analisante ao analista. Um exemplo desse esvaziamento, a meu ver, contraposto talvez apenas por eventos erotomaníacos que aparecem (mas tampouco com grande frequência) na clínica atual das psicoses, é a raridade de situações com as quais um analista, hoje, tenha de se haver com o que Freud, em “Observações sobre o amor transferencial” (1915 [1914]), relatava nos seguintes termos: “a paciente não quer falar nem ouvir mais nada além do seu amor, que ela exige que seja correspondido”. Em outras palavras, a clínica analítica de nossos dias – diferente do que acontecia à época de Freud – não se trama propriamente como um romance composto pelas relações de amor e de ódio de seus personagens.

Uma vez que Lacan ensinou-nos a articular o ódio com a não suposição de saber (e não pura e simplesmente com hostilidades endereçadas ao analista), considero pertinente investigarmos se a contemporânea descrença no Inconsciente como saber ‒ muitas vezes manifestada por uma impermeabilidade ao que se pode saber sem saber que sabe ou pela busca de soluções que funcionem sem implicação efetiva de quem se encontra sofrendo ‒ seria indicativo de uma prevalência da transferência negativa em nossa prática. Esse aspecto negativo da transferência, como já preconizava Freud ao tematizar tal conceito fundamental, tampouco se endereça à pessoa do analista e, sim, como antecipou-nos Lacan, ao saber a que um analista é identificado e do qual se vale em sua escuta: há descrédito quanto ao saber inconsciente. Trata-se de um modo fleumático – para não dizer indiferente ou blasé – de apresentação do ódio transferencial e que nos daria a chance de expandir, mais além das psicoses (mas com as diferenças devidas a cada estrutura clínica), o que Lacan pôde designar, no seminário 23, como o “desabonamento do Inconsciente”.

Sabemos que, com essa designação na qual o Inconsciente se apresentaria sem seu aval como discurso, ou seja, sem a trama do Outro na qual o sujeito se vê enredado, Lacan procurou dar lugar ao modo como Joyce, com o que escreveu e criou, pôde prescindir da Psicanálise para exercer – frente aos acontecimentos que lhe acometiam a vida e o desprendiam do corpo – um savoir y faire capaz de fazê-lo operar com o que lhe era imposto na experiência de viver sem subjetivamente ser acolhido na alvenaria do Outro.

Certamente, nessa expansão contemporânea do desabonamento do Inconsciente evocada aqui por mim, nem sempre vamos encontrar a genialidade da solução joyceana, mas, como demarcou Miller em sua “Nota passo a passo”, de 2005, é a essa solução que Lacan recorria “para dar um passo além do ponto onde Freud se deteve” e nos permitir fazê-la atravessar ainda mais um século, agora o XXI. No caso de Joyce, a abordagem do sintoma se fez com tanto rigor e determinação que acabou por identificar-se, como faz notar Lacan, no seminário 23, “com o individual”, chegando – com sua obra – “ao ponto extremo de encarnar nele o sintoma, por meio do qual ele escapa a toda morte possível, deixa de se reduzir a uma estrutura que é aquela mesma do uom”, ou seja, do homem reduzido à sua própria ressonância, ao materialismo do significante, a um sopro: u o m.

No mundo contemporâneo, o apego e a busca do individual são também muito insistentes, mas – diferente do que acontece a Joyce – tomam um alcance massificado e paradoxal sob a forma do que, mesmo em outros campos diferentes da Psicanálise, tem sido chamado de “individualismo”. Experimentamos, hoje, uma massificação da identificação ao individual e que chega mesmo a incluir, pela via do destemor ou do que se impõe como fleumático, uma espécie de descrença quanto à própria morte, tal como podemos detectar, por exemplo, na onda pela qual, em plena pandemia do coronavírus e em várias partes do mundo, indivíduos se aglomeram como se a Covid não resultasse em óbitos ou sequelas, além de também se negarem a vacinar-se.

Assim, culturalmente, não me parece que estejamos às voltas com uma redução do Outro ao Um, mas com um investimento massificado no que o circuito autoerótico pode ter de mais mortífero em um mundo onde a alvenaria do Outro não tem mais como sustentar-se. O apelo à solidariedade, mesmo se a concebermos pautada no desamparo assustador ao qual a pandemia do coronavírus expõe o mundo e, portanto, não circunscrita à propriedade comum de nos mantermos como uma comunidade viva, é epidemiológica, política e socialmente defensável, mas tal apelo não sensibiliza, tampouco abala, as formas mais obscuras de uma identificação massificada ao individual.

De modo mais circunstanciado, em nossa prática como analistas, a identificação ao individual se apresenta, por exemplo, nas dificuldades para se acessar o Inconsciente que, já em uma concepção freudiana, designa um saber do qual não se sabe que sabe. Essa identificação ao individual também se expressa pela não-pertinência sustentada por muitos analisantes quanto ao que se tramaria antes mesmo da suas próprias existências. Logo, não há Outro que ultrapassaria, como saber ou trama, o que cada um experimentaria como “próprio” ou concernente a “si”. Essa dificuldade cada vez maior de ir além de “si” e do autoerotismo, esse confinamento no Um-sozinho, essa descrença no Inconsciente como discurso do Outro são, no entanto, mais genericamente compensados hoje pelo que se busca nos “oráculos” Google ou Big Pharma como ordenamento e tratamento para o que acontece ao corpo. De modo mais circunscrito, tal confinamento na satisfação autoerótica e o desmoronamento da alvenaria do Outro fazem nossa clínica se apresentar como o que Lacan chamou, em “Vers un signifiant nouveau”, na sessão do dia 19 de abril de 1977 do seminário 24, de “um autismo a dois”.

Porém, esse “autismo a dois” – ao qual a clínica psicanalítica se reduz hoje em dia mais do que nunca e (com suas devidas e importantes diferenças) muito antes de uma análise ter a perspectiva de seu fim – não deve ser confundido com individualismo de massa tão difundido pelo mundo contemporâneo. Porque, a princípio, mesmo imerso nesse autismo, o analisante faz um endereçamento, ou seja, seu desabonamento do Inconsciente não é suficientemente radical para recusar a busca por um analista que, então, tem a ocasião para fazer as vezes de Heteros, ou seja, de alteridade e diferença, no âmbito mesmo do auto, que se “alteriza” na transferência experimentada nesse “autismo a dois”. Laurent, em sua conferência no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2019, “Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência”, nos oferece uma leitura inovadora da função do analista como Sujeito Suposto Saber a partir do seminário 24 de Lacan. Nesse seminário, a transferência relacionada à alvenaria do Outro está mesmo ausente, como destacou Miller, no já citado En deçà de l’inconscient, de 2007, mas o Real ao qual ela responde leva Lacan, em “Vers un signifiant nouveau”, a ressaltar que, como “suposto saber”, o analista “é uma atribuição”, indicada pelo adjetivo suposto e porque saber aparece aí como “seu atributo”. Por sua vez, Laurent, no Congresso da AMP, esclarece que, desde Freud, fazer um juízo de atribuição não confere, ao que é assim atribuído, um “juízo de existência”. 

Porém esse “autismo a dois” – ao qual a clínica psicanalítica se reduz hoje em dia mais do que nunca e (com suas devidas e importantes diferenças) muito antes de uma análise ter a perspectiva de seu fim – não deve ser confundido com individualismo de massa tão difundido pelo mundo contemporâneo.  Porque, a princípio, mesmo imerso nesse autismo característico da experiência analítica, o analisante faz um endereçamento, ou seja, seu desabonamento do Inconsciente não é suficientemente radical para recusar a busca por um analista que, então, tem a ocasião para fazer as vezes de Heteros, ou seja, de alteridade e diferença, no âmbito mesmo do auto, que se “alteriza” na transferência experimentada nesse “autismo a dois”. Laurent, em sua conferência no Congresso da Associação Mundial de Psicanálise de 2019, "Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência", nos oferece uma leitura inovadora da função do analista como Sujeito Suposto Saber a partir do Seminário 24 de Lacan. Nesse Seminário, a transferência relacionada à alvenaria do Outro está mesmo ausente, como destacou Miller, no já citado "En deçà de l’inconscient", de 2007, mas o Real ao qual ela responde leva Lacan, na sessão do dia 19 de abril de 1977, a ressaltar que, como “suposto saber”, o analista “é uma atribuição”, indicada pelo adjetivo suposto e porque saber aparece aí como “seu atributo”. Por sua vez, Laurent, no já referido Congresso da AMP, esclarece que, desde Freud, fazer um juízo de atribuição não confere, ao que é assim atribuído, um “juízo de existência”. 

A meu ver, se atribuir um saber ao analista não lhe confere uma existência, é a partir dessa inexistência que um analista (e hoje mais do que nunca), imerso no “autismo a dois” convocado pela prática analítica, pode responder à altura do que se experimenta, não sem perturbações, como o desmoronamento da alvenaria do Outro e como a inexistência mesma do Outro. Em outras palavras: nesse “autismo a dois”, um analista, graças à transferência, faz as vezes do Outro que não existe, mas que tem um corpo e responde ao que lhe é endereçado.

Atualmente, quando alguém é relegado em sua existência, não é incomum que ele (ou ela) comece a seguir ou, como dizem os jovens hoje, stalkear, imiscuir na “privacidade” de quem o declarou como inexistente. O problema, nesses casos tão atuais e constantes em nossa clínica, é que o(a) stalkeador(a) não consegue sair do próprio autismo a que foi relegado(a) ao ser “bloqueado(a)” ou mesmo “cancelado(a)” como “inexistente”. Mais ainda, nesse contexto, stalkear é o modo extremo de impor sua existência a quem lhe alijou o ser. Por sua vez, um analista, de acordo com a citação que Laurent recorta e comenta de Lacan, coloca-se como “um Outro que segue” o que um analisante “tem para dizer, para saber o que ele sabe”, mas ele o faz pelo que lhe é atribuído e não a partir da própria existência, apresentando-se, portanto, como o Outro que Lacan marcou, ainda em “Vers un signifiant nouveau”, “com uma barra que o rompe”, isto é, a marca mesmo da inexistência do Outro, e para qual não há alvenaria capaz de escamoteá-la.

Uma análise, então, configurando-se como um “autismo a dois”, implica “forçar esse autismo” porque se vale de algo “comum” aos dois que o compõem, ou seja, algo que não é tão segregado, “auto” ou isolado, embora se apresente como Um-sozinho. Esse elemento comum não é propriamente uma falha ou uma insuficiência a que qualquer um estaria sujeito e que o faria abrir-se para os outros. Considero-o melhor cingido pelo que Lacan forjou com um termo – lalangue (ou “lalíngua”, na tradução proposta por Haroldo de Campos )  – no qual as palavras são decompostas, não sem satisfação, pela lalação, ou seja, pelo que ressoa sem sentido (mas não sem fazer algum “laço”, alguma “pega”), por exemplo, nessa ressonância pela qual a gente se vê balbuciando ao ecoar os balbucios de um bebê, pela qual os adolescentes se inventam palavras como se falassem uma língua inexistente ou, ainda, os enamorados se nomeiam de uma forma inaudita e que, por vezes, passa a ser adotada por aqueles que os rodeiam… Assim, enredado nesse “autismo a dois”, um analista dá pega, isto é, faz ainda valer a transferência quando, seguindo aquele que lhe endereça a fala, o faz escutar o Real que, de modo surpreendente e inadvertido, lhe toma o corpo.

Nos tempos de Freud, marcados, como nos elucidou Miller, em “O sintoma e o cometa”, de 1997, pela interdição, o sem-sentido se fazia ecoar como o próprio sentido sexual dos sintomas. Nos nossos tempos, aturdidos pela devastação da alvenaria do Outro, o sem-sentido se apresenta no modo como um analista faz seus analisantes escutarem as palavras que insistem em ecoar em um mundo que tende a desmerecer ou mesmo recusar a força que elas têm de impactarem os corpos. É pela escuta desses ecos de lalangue e em consonância com o que eles têm de efetivamente individual, ou seja, não-compartilhável, que os analistas mostram como a transferência, tomada por mutações que podem diferenciá-la radicalmente do que se lê na trama freudiana dos afetos, pode ainda afetar o que se passa em uma análise, e fazer a Psicanálise transpor mais um século – o XXI.

Por sua vez, um analista, de acordo com a citação que Laurent recorta e comenta de Lacan, coloca-se como “um Outro que segue” o que um analisante “tem para dizer, para saber o que ele sabe”, mas um analista o faz pelo que lhe é atribuído e não a partir da própria existência, apresentando-se, portanto, como o Outro sobre o qual Lacan faz incidir, ainda na sessão do dia 19 de abril de 1977 do Seminário 24, “uma barra que o rompe”, e pode ser tomada como a marca mesmo da inexistência do Outro, para qual não há alvenaria capaz de escamoteá-la.

 

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