Yolanda Vilela 

Imagem, corpo, vida. É em torno desses significantes que os artigos deste número de Derivas analíticas fazem o seu circuito. Os textos tentam apreender, cada um ao seu modo, um pouco do mistério inerente ao corpo e à vida, bem como as incidências da imagem sobre o corpo próprio. 

Os textos da seção Mathesis evocam a importância do pensamento de Georges Canguilhem para a psicanálise de orientação lacaniana, discutindo tanto a pertinência da noção de sujeito da biologia (Antônio Teixeira e Anamáris Pinto) quanto a ideia de “saúde” aplicada ao corpo falante (Frederico Feu), tema do próximo Congresso da Associação Mundial de Psicanálise - AMP, em 2016, no Rio de Janeiro. As teses desse “epistemólogo da biologia”, para quem o ser vivo deve estar sempre em primeiro plano quando se pretende saber algo da vida, foram retomadas por Jacques-Alain Miller em seu Curso de Orientação Lacaniana. Miller evoca a fórmula de Canguilhem segundo a qual “a saúde é a verdade do corpo” para, em seguida, precisar que “a saúde seria a verdade de um corpo”. É o que os testemunhos do passe elucidam exaustivamente, porém de diferentes modos: a verdade de um corpo residiria sobretudo nas marcas silenciosas depositadas pela linguagem por ocasião de seu encontro com o corpo.

Ainda nesta seção, Antônio Teixeira explora a dimensão de violência contida em toda fundação do Universal, fazendo referência à leitura lacaniana de Aristóteles e Pierce. Partindo da constatação de que não se trata aí de realidade ontológica, mas de realidade discursiva, o autor desenvolve a ideia de que a fundação do Universal só pode ser logicamente pensada como um ato de segregação. 

A seção Aquele texto... reafirma a atualidade clínica e teórica de artigos publicados há exatamente vinte anos, em 1995, sobre o tema do Imaginário. Pierre-Gilles Guéguen lembra, em seu texto, que o imaginário não é homogêneo, uma vez que admite diferenças em seu cerne. Nada, no imaginário, tem o mesmo valor. Através de fragmentos de um caso clínico, Guéguen demonstra que algumas imagens, como a insígnia e a marca, são menos marcadas pelo narcisismo do eu. Por sua vez, Pierre Skriabine admite, com Lacan, que “não há nada no inconsciente que com o corpo faça acordo. O inconsciente é discordante”. “O efeito da linguagem é o patema [pathème], a paixão – o sofrimento – do corpo”; em outras palavras, esse efeito é o sintoma, nisso que ele tem de irredutível, ali onde ele constitui o traço indelével próprio a cada sujeito: “Aprende-se a falar e isso deixa traços [...] e assim isso deixa consequências que não são nada mais do que o sinthoma”, como observa Lacan em 1978. Ainda na mesma seção, Paulo Siqueira convoca Machado de Assis e Jacques Lacan para falar da angústia e suas relações com a imagem especular. Por fim, o artigo de Hervé Castanet esclarece em que o teatro de Genet permite interrogar as imagens indeléveis, a saber, a função do imaginário na clínica e no tratamento analítico. 

A rubrica Você disse contemporâneo?, traz um ensaio de Clarissa Vieira sobre Michelangelo Antonioni. Clarissa mostra por que o cineasta italiano é considerado, nas trilhas de Rossellini, o precursor do cinema moderno. Embora a trilogia de Antonioni – A aventura, A noite, O eclipse – seja traduzida por alguns críticos como o “drama da incomunicabilidade”, para Clarissa, ao contrário, o impasse desses filmes consiste em sua tentativa de “comunicar o incomunicável”. Ao testemunhar a perda do vínculo entre o homem e o mundo, as personagens de Antonioni revelam que tal vínculo será resgatado não pelo saber, mas pela crença no corpo. “É preciso crer no corpo”, insiste a autora. “Esse corpo na imagem que, não separado da alma, carrega de alguma forma as marcas dos acontecimentos, dos afetos, das paixões. Daquilo que o corpo pode ou não suportar”. Nos filmes de Antonioni o corpo habita a imagem, para depois deixá-la, fugidio, saindo do enquadramento e do espaço ao qual ele parece não pertencer. Como afirma César Guimarães, “em Antonioni, o corpo torna-se aquilo em que o pensamento mergulha para atingir o impensado, isto é, a vida. Não que o corpo pense, como lembra Deleuze, mas porque obstinado, teimoso, ele força a pensar o que escapa ao pensamento". 

Na entrevista concedida à revista, o desenhista, videomaker e publicitário Conrado Almada revela a singularidade de suas relações com a imagem e o desenho. Para ele, se a criação não é o lugar de uma simples reprodução da realidade, a imagem que se vê precisa passar por uma espécie de deformação e, de preferência, sem o recurso à régua ou à borracha. O artista explica por que ao “perfeito” ele prefere o “novo”. Ao comentar o episódio do Charlie Hebdo, Conrado lembra a força política, artística e poética das imagens. Vale a pena conferir! 

Ainda nesta seção, Marcus André Vieira nos brinda com um texto, na verdade uma interessante conversa, da qual participam Ram Mandil, Romildo do Rêgo Barros e outros colegas, sobre o estatuto do objeto a, a criação artística e a espinhosa questão da sublimação na arte moderna e contemporânea. Para isso, Marcus parte de um ponto inusitado: um quadro do programa de Luciano Huck. 

Fechando este número da revista, a rubrica Sinopses, resenhas etc.& tal oferece a você, leitor, textos que não poderiam ser mais oportunos. Todos celebram a vida, esse imenso, misterioso e inexorável continente: “a vida menor”, de Drummond, “a vida escrita”, de Duras e “a vida que jorra do cômico”, de Laura Rubião, comentados e resenhados respectivamente por Teodoro Rennó Assunção, Ruth Silviano Brandão e Márcia Rosa. 

Boa leitura!

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