Joseph Attié

 

É a partir da fala, é claro, que se abre caminho para o escrito.

Lacan. De um discurso que não fosse semblante.

Daí as duas manifestações da Linguagem: a Palavra e a Escrita…

A Palavra (criando as analogias das coisas pelas analogias dos sons),

a Escrita marcando os gestos do Pensamento que se manifestam pela palavra.

Mallarmé. Le mystère dans les lettres.

 

O título que me foi proposto para esta conferência coloca questões bastante complexas.[1] Apresentarei, nesse sentido, uma perspectiva; farei um contorno da questão baseado em duas interrogações. Qual é a função da escrita para Lacan? Como abordar a questão do real? Como esta última questão se encontra no cerne do Curso de Jacques-Alain Miller[2] deste ano, é, então, com grande prazer, que vou explorar várias de suas formulações.

Introduzirei minha fala evocando as diversas escansões do ensino de Lacan. Desenvolverei, em seguida, as funções da escrita que ele valorizou; quanto ao real, partirei da ideia de que é aquilo que está na causa.

Causalidade na escrita

Há sempre uma causa naquilo que nos faz dizer, escrever ou fazer alguma coisa. Lacan situou essa causalidade inicialmente no nível da imagem no espelho. Ele não usou, para ela, o termo escrita. Porém, ele a chamou exatamente de causalidade no escrito intitulado: Formulações sobre a causalidade psíquica,[3] de 1946. O ponto crucial desse texto diz respeito ao reconhecimento, pelo sujeito, de sua imagem no espelho pela identificação com o semelhante. Lacan vai muito longe nessa perspectiva, indicando, desse modo, a sua ambição de sempre: “Assim, cremos poder designar na imago o objeto próprio da psicologia, exatamente na mesma medida em que a noção galileana do ponto material inerte fundou a física”.[4]

Podemos, hoje, ficar surpresos com o fato de tal frase ter sido escrita por Lacan. A imago, essa imagem de si no espelho, está para a psicologia como o ponto material está para a física. Não saberíamos atestar, de maneira melhor, a ambição científica de Lacan em sua consideração do real.

O discurso de Roma[5] constituiu, num segundo momento, um ponto de virada importantíssimo, que privilegiou o simbólico na ordem da causalidade. Esse discurso, datado de setembro de 1953, foi precedido por uma conferência pronunciada em julho desse mesmo ano, intitulada O simbólico, o imaginário e o real,[6] uma espécie de instante de ver, que iria guiar todo o seu ensinamento ulterior. Em 1974, ou seja, vinte e dois anos mais tarde, ele fará o seu Seminário RSI, onde real, simbólico e imaginário serão equivalentes. A recusa do privilégio de um desses registros sobre os demais terá infinitas consequências. Lacan prosseguirá o seu Seminário no ano seguinte introduzindo o conceito de sinthome, que virá se juntar ao conceito de sintoma, introduzindo um quarto termo ao ternário do nó borromeano, enlaçando esses termos uns aos outros.

Essa é uma simples evocação de um longo percurso, necessária para que se possa interrogar aquilo que se joga entre escrita e real a partir dos três registros: real, simbólico e imaginário.

Entre divã e página branca

Todo analisante escreve muitas coisas no contexto de seu tratamento. Seja para anotar simplesmente os seus sonhos, seja para retomar uma sessão de análise, seja para redigir intervenções clínicas ou teóricas. Podemos dizer que existem aí dois registros: esse que opera pela palavra sobre o divã e aquele que opera pela escrita sobre a página branca. Esses registros não são equivalentes. A escrita é algo de contingente em relação ao tratamento, ao passo que a palavra é inerente à sua natureza.

Acontece também de organizarmos oficinas de escrita para pacientes em algumas instituições, geralmente nos casos em que um tratamento analítico não é possível. A escrita vem, assim, substituir a palavra. Ela passa a ter a mesma função que os desenhos de criança, por exemplo, ou os jogos infantis, a partir dos quais se tenta ler alguma coisa na tentativa de compreender como se enlaça a relação da criança com o mundo. Essa tentativa de leitura produz efeitos sobre aquele que escreve, que desenha ou que brinca, ela fornece ao analista elementos da lógica da estrutura, para, eventualmente, dar lugar à invenção do paciente.

Durante minha análise estive às voltas com uma escrita que não foi desencadeada pelo tratamento. Era uma escrita poética, presente bem antes do início da análise, que tomou uma amplitude inaudita e me acompanhou ao longo de meu tratamento. A questão que então se impôs a mim foi a de cernir o laço existente entre esses dois registros: o da palavra analítica e o da escrita poética, o da palavra e o da escrita.

Darei, de imediato, a resposta que acabou emergindo para mim, sem que eu deixasse de interrogá-la: uma distinção deve ser feita entre o que pode operar pelo significante, pela palavra, e o que opera pela escrita, ou seja, pela letra; entre o que opera pelo simbólico e o que passa pelo real da letra. Essa evidência se impôs tanto mais fortemente na medida em que eu não entendia nada do que escrevia. Eu não procurava, aliás, compreender, como se procura compreender um sonho, uma vez que essa escrita tomava estatuto de poesia que bastava a si mesma. Além do mais, isso não entrava em uma dialética com o Outro da transferência. A coisa não lhe era, aliás, sequer endereçada, embora eu me apressasse em confiar ao analista o que eu escrevia.

O que estou dizendo aqui já foi dito publicamente e foi até mesmo publicado. Se volto a esse ponto e se me repito é porque essa questão insiste, impondo-me dar prosseguimento à minha interrogação. O título que me propuseram para esta conferência me pareceu como vindo da parte do diabo, vindo me cutucar e me despertar. Nem sempre se trata de interpretar o que diz essa escrita, como se ela fosse uma palavra analítica. A questão que me importa é saber de onde vem essa escrita, qual é a sua origem, e por que isso insiste. Existe aí uma espécie de mecanismo que precisa ser pensado e interrogado; eu não hesito, portanto, em voltar a isso, com o risco de agravar as dificuldades.

Minha intervenção terá, desse modo, o aspecto de um trabalho analítico fundado na teoria de Lacan. Além disso, ela se apoiará na certeza de uma experiência pessoal que permanece parcialmente enigmática para mim.

Origem e começo

Alguma coisa me parece curiosa e me incita a desvendar o seu mistério. Não há origem para o ser humano. O nascimento não constitui uma origem. Tampouco o pai, a mãe ou o Nome-do-Pai constituem uma origem.

Quer se situe a origem do lado do paraíso terrestre, do verde paraíso dos amores infantis ou de tal idade de ouro que teria sido vivida, de todo modo, essa origem toma efeito e sentido somente como perdida. A origem seria, portanto, a perda do início. Toda a teoria analítica e toda a nossa prática o atestam.

Yves Bonnefoy, poeta que muito aprecio, também parte da constatação da origem perdida distinguindo aí dois níveis. Há, para ele, um conjunto de epifanias, espécies de experiências místicas, de palavras às vezes muito simples que vêm ao espírito ou visões agudas que constituem espécies de revelações e marcam o sujeito por uma presença e uma evidência que não se pode esquecer. Por exemplo, a visão de tal árvore, de certo dia, de certo céu, de tal fonte, de algumas flores ou de certos seres. São experiências que cada um viveu em sua infância. As palavras trazem com elas uma certeza. A árvore ou a fonte remetem sempre a essa árvore, a essa fonte do início. Mas, ao lado dessas coisas simples e humildes, há, diz Bonnefoy, o caminho que passa ao lado, que leva à porta da casa que tem, em suas salas e em seus quartos, homens e mulheres cujas sombras ainda percebemos, cujas vozes quase ouvimos. Essas pessoas acabarão por morrer, e essa casa será demolida. “Que minha mãe não morra”, repete para si mesma a criança ao sair de uma primeira inconsciência.[7] Não basta dizer “a fonte” para fundar a coisa, é preciso frases infinitas para dizer isso que vai de par com a morte e o acaso. Existem, portanto, dois níveis de realidade. Por um lado, as árvores, que estarão sempre ali; por outro, esses seres marcados pela morte. Há aquilo que se nomeia, e há o que jamais findará de querer se dizer. Assim se constitui a poética de Bonnefoy. Certas palavras parecem então remeter a uma origem, ao passo que o infinito da palavra é necessário para assegurar alguma coisa que seria como a origem, sem haver jamais garantia de que haja ali uma origem.

Pascal Quignard, outro escritor francês, situa a origem no tempo aoristo.[8] O aoristo é um tempo verbal que, na língua grega, corresponde a um passado indeterminado. Não é alguma coisa que se pode datar com precisão. Em sua gramática do Bon usage, Grevisse diz que é o que exprime um fato realizado em um momento determinado do passado, sem levar em consideração o contato que ele possa ter com o presente. O aoristo não implica, em si mesmo, nem continuidade nem simultaneidade com relação a um fato passado e marca uma ação — ponto final. Vejamos um exemplo extraído de La Fontaine: “Compadre raposo certo dia gastou um pouco a mais. E convidou comadre cegonha para jantar”. De uma ação fora do tempo, do universo da fábula, uma espécie de lenda criada pelo escritor, se tentou fazer um ato carregado de uma moral de consequências imprevisíveis. O verbo parece situar ali uma origem, simplesmente porque ele situa uma ficção que está presente em toda linguagem.

Para Mallarmé, é a poesia que está na origem. Ela é a única maneira de exprimir a origem do universo e, para tanto, ele se apoia em Homero, do qual não sabemos nem mesmo se ele, de fato, existiu. Podemos igualmente remontar ao mito e dizer de Orfeu que ele cantou o mundo e assim o fez nascer.

Não é, evidentemente, um acaso se os poetas e os escritores se colocam esse tipo de questão. Eles afirmam, com efeito, mediante suas escritas, alguma coisa que não aconteceu anteriormente. Mas, de onde lhes vem a ideia de afirmar uma primeira vez essa ou aquela ficção e querer, assim, nomeá-la?

O analista é levado a se colocar outro tipo de questão. De onde lhe vem o que se chama o “desejo do analista”? A resposta a essa pergunta não lhe chega sob a forma do aoristo, que, aliás, não existe em francês. Ele pode, em compensação, dizer que em tal dia ele teve um sonho, que certo dia o seu próprio analista se ausentou sem que se soubesse o porquê ou que ele fez uma interpretação que se tornou oracular. Não deixaremos de evocar, nessas condições, a epopeia edipiana para explicar o que pôde ter acontecido naquele dia. Falamos, então, de contingência.

Que eu saiba, Lacan não fez referência ao aoristo. Contudo, em se tratando da temporalidade do inconsciente, ele enfatizou o passado simples e o futuro anterior. Este último indica um “passado do futuro”. É exatamente a isso que remete a noção freudiana de a posteriori, Nächdrangung. Com esse termo, Lacan vai se interrogar sobre o que é o retorno do recalcado, precisando que isso não vem do passado, mas do porvir, que isso reside, portanto, na atualização desse passado.[9]

Mallarmé formulará esse princípio em uma pequena pantomima intitulada, justamente, Mimique: “A cena ilustra somente a ideia, e não uma ação efetiva, num enlace vicioso, porém sagrado, entre o desejo e a realização, entre a perpetração e sua lembrança: aqui se adiantando, ali rememorando, no futuro, no passado, sob uma aparência falsa de presente. Imaginem o mimo no silêncio absoluto de seu jogo, instaurando um momento de pura ficção sob uma falsa aparência de presente”.[10] Entre a ação de Pierrot assassin de sa femme — título do libreto —, ação que não sabemos se de fato aconteceu, a escrita desse roteiro em uma folha de papel e a sua retomada silenciosa pelo mimo, temos uma metáfora, por excelência, da ausência de origem.

O termo hebreu Béréshit se opõe a essa ideia mítica da origem. No Antigo Testamento se diz, em hebreu:Béréshit bara Élohim Et hachamoïme va Et Haaretz. O que equivale a dizer que, no “começo”, Deus criou o céu e a terra. Os talmudistas não deixaram de se perguntar por que a criação começa pela letra Beth, deBéréshit, e não por Aleph, que a precede e que deveria, assim, ter prioridade sobre Beth, segundo sua lógica que se pretende divina. Faço essa observação porque já existe aí um debate entre o significante “no começo” e a letra Aleph ou Beth.

Pode-se, então, dizer que, desde o início, se imagina sempre uma origem, que parece ser do campo da fantasia, ao passo que o começo é da ordem da manifestação do sintoma pelo significante ou letra. Mallarmé, por sua vez, imbricou origem e começo afirmando: “Os deuses não são mais que palavras…”.[11]

Lacan traduz Béréshit em seu Seminário A transferência por esta fórmula: “no começo era o Verbo”, se opondo, assim, a Freud, que defendia, de preferência, uma citação do Fausto, de Goethe, na última frase deTotem e tabu: “no começo era o ato”. Outros, ainda, traduziram a fórmula de Goethe por: “no começo era a ação”. Temos aí três enunciados incompatíveis, diz Lacan, porque “o que importa não é, de modo algum, seu valor de enunciado, mas sim o seu valor de enunciação, ou ainda de anúncio, quero dizer, aquilo que faz surgir o ex-nihilo próprio a toda criação”.[12] Para situar um valor de enunciação, somente o significante nos dá uma indicação. Em se tratando da experiência analítica e da transferência, Lacan prefere dizer: “no começo era o amor”, a fim de sublinhar “o que há de espesso e de confuso nesse começo”. É um começo, precisa Lacan, “não de criação, mas de formação”. Guardemos essa distinção. O amor não é uma criação, mas uma formação transferencial.

Outros testemunhos poéticos

Se nos voltarmos agora para a criação no sentido da sublimação, caberia insistir sobre a frase que abre todo romance ou toda obra.

Em busca do tempo perdido, de Proust, abre com estas palavras: “Durante muito tempo, costumava deitar-me [me coucher] cedo”.[13] Isso parece começar de modo edipiano, uma vez que a expectativa do pequeno Marcel é relativa à sua mãe, e o drama é o de sua separação dela. Gérard Genette fez um uso particular dessa frase. Ele se perguntou o que teria resultado disso se Proust tivesse começado escrevendo: “Durante muito tempo, costumava tomar banho [me doucher] cedo”. Ficaríamos tentados a dizer que tudo isso parecia começar pela masturbação, e poderíamos imaginar um desfecho bem diferente. Mas, em se tratando de Proust, sabemos que toda a Recherche não era senão uma tentativa de explicitar o seu desejo de escrever. Temos aqui a ocasião de opor a análise, que começa pelo amor, e a escrita literária ou poética, que começa por um desejo. Desejo de escrever inicialmente confuso, em Proust, mas que, em seguida, se tornou mais explícito.

James Joyce, por sua vez, começou Um retrato do artista quando jovem por: “Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha”,[14] enfatizando, assim, a tradição irlandesa que dá ao conto e ao contista toda a sua importância. Nada nos impede de imaginar que estamos na Ilíada e na Odisseia, de Homero.

Em um texto intitulado Les incipits, je n’ai jamais appris à écrire, Louis Aragon defende a ideia de que a primeira frase de um romance dá totalmente o tom desse romance; que o escritor, de fato, começa por descrever uma criança, um menino ou uma menina, um adolescente, uma adolescente, ou ainda um adulto, e que essa sequência o obriga a orientar o seu romance em um sentido ou em outro; que o autor, ao dar à sua personagem o nome Jean-Jacques ou Mohamed, isso o faz mergulhar irremediavelmente em universos diferentes. Tal é o impacto de um começo. Não é à toa que nos perguntamos sobre o que é a demanda do sujeito que começa uma análise. Ele inaugura um começo em sua vida que estabelece um antes e um depois.

Na falta de uma origem para o falasser, há um ou alguns começos. Isso nos leva à proposição: “no começo era o Verbo”, isto é, o significante, a palavra. O começo se inicia, portanto, pelo significante, e a origem, eventualmente, começa pela letra, pois a letra como signo do alfabeto sempre esteve ali e permanece idêntica a si mesma. Eis-nos, portanto, novamente, com o analisante e sua palavra, por um lado, e o escritor e sua escrita, por outro, do lado da letra.

Impossível não evocar aqui o estatuto particularíssimo e privilegiado do sonho. O sonho, esse misto de palavra e escrita, remete a uma origem que emerge não se sabe de onde, e a um começo mais preciso, que é o relato do sonho, que implica Imaginário, Simbólico e Real. A palavra do relato do sonho se funda numa escrita cujo estatuto é tanto mais misterioso por ser do campo do inconsciente. Durante muito tempo, se considerou o inconsciente como uma espécie de reservatório de representações recalcadas. Na realidade, o inconsciente é vazio. É uma página branca. Lacan dirá em seu último ensino que é um real. É a palavra que o constitui, ou seja, é a palavra que escreve pela primeira vez o que nunca esteve ali. Encontramo-nos, portanto, nesse ponto, entre o dito e o escrito. Há muito tempo giro em torno dessa proposição a fim de interrogar a questão da escrita e do real.

Todo o ensino de Lacan, aliás, transita entre estes dois eixos: o dito, o oral do Seminário, e a escrita de seusEscritos. Lembremos também que ele define a posição daquele que ensina como sendo aquela do analisante.

Consideremos uma proposição maior de Mallarmé, diferente da palavra do sonho, e tentemos isolar suas coordenadas nos registros lacanianos: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso” [Un coup de dés jamais n’abolira le hasard]. Temos aí uma conjunção extraordinária das três instâncias: Imaginário, Simbólico e Real. A ideia do lance de dados é esta, totalmente imaginária, de se ganhar uma fortuna ou de perdê-la a partir de um lance de dados. A proposição se inscreve na ordem do simbólico, pois ela produz uma espécie de lei: não se pode abolir o acaso. E o acaso nos remete à ideia do real. Podemos mesmo acrescentar que essa escrita constitui o que Lacan chamou de uma escrita de um pedaço de real. Isso é tanto mais interessante na medida em que a proposição constitui uma espécie de tautologia. O lance de dados é literalmente sinônimo do acaso. O que equivale a dizer que o acaso jamais abole o acaso. O jamais [jamais ne] é uma negação absoluta do tempo, que acentua sua parte real. Essa é uma maneira de nos lembrarmos da ordem do impossível.

Da clínica analítica

Que lições tirar de tudo isso na clínica? Apresento dois fragmentos oriundos de minha experiência.

Certo dia, uma analisante começou sua sessão dizendo: “Hoje eu me autorizei a chegar atrasada”. De fato, seu atraso era de dois ou três minutos. Talvez eu nem tivesse me dado conta se ela não tivesse falado. Aproveitei o que ela disse para interromper imediatamente a sessão, que durou somente alguns segundos. O que me autorizou a fazer uma sessão tão curta assim? Não foi, como vocês podem imaginar, sequer por um capricho meu tampouco pela aplicação de uma regra. Por outro lado, eu tinha em mente o que havia depreendido de seu discurso já havia certo tempo, a saber, ela se definia como uma “mulher impedida”. Essa é a fórmula de sua fantasia, extraída de seus quinze anos de análise. Sua mãe a impedia de fazer todo tipo de coisas. O que se escreve de seu real é o seu impedimento. Essa fórmula não é opaca, todo mundo pode imaginar do que se trata. O que resultou dessa pontuação de uma sessão curta? Isso não trouxe grandes transformações. Nada mudou, de fato, e ela continuou repetindo de um jeito ou de outro, ao longo dos anos, que ela era mesmo uma mulher impedida. O final de sua análise há alguns meses se configurou uma vez mais como alguma coisa à qual ela se autorizava.

Resumindo, a fórmula da fantasia, fora dos cenários imaginários, parece bem ser uma escrita de um pedaço de real, equivalente desta fórmula de Freud: “Bate-se numa criança”. Sabemos o quanto ele insistiu em dizer que a segunda frase dessa fantasia — “meu pai me bate” —, que não é formulada pelo analisante, era uma construção sua. Fantasia fundamental que corresponde ao masoquismo fundamental.

Vejamos uma frase que emergiu de um sonho de outra analisante: “Finalmente, o dinheiro não serve para nada, nem mesmo para ser uma mulher”. Tentar explicitar essa fórmula enigmática é tentar extrair a lógica do tratamento, o que não farei aqui. Eu a situo, simplesmente, na série de uma escrita de um pedaço de real. Ela parece emergir de um inconsciente real. Esse tipo de fórmula necessita ser anotada imediatamente, pois basta um nada para se incorrer num erro de transcrição. Tomemos, nesse sentido, o provérbio que diz: “Quem conta um conto aumenta um ponto”. É uma frase que parece inscrita desde sempre na língua, e ninguém imagina poder dizê-la de outro modo.

Para separar ao máximo escrita e real, lembremos duas formulações de Lacan. O real, diz ele, é o que sempre retorna ao mesmo lugar. Existe aí algo de fixo, de inerte, sem dialética. Lacan afirma também que o real é o impossível. Em suma, o real é o que não cessa de não se escrever. É o que ele diz da relação sexual, proposição que não deixa de provocar surpresa e incompreensão.

Contaram-me recentemente algo que foi dito durante um colóquio feminista: “E pensar que ainda tem gente que acredita na diferença entre os sexos…”. A opinião que se defendia era que o sexual pertencia à esfera do cultural, e a afirmação era considerada subversiva. Isso equivale a dizer que ainda não chegamos ao fim quanto a explicitar esse tipo de enigma!

Freud abordou essa questão da maneira mais simples ao observar que não há representação do sexo no inconsciente. Esse é o índice de um certo real. Para Lacan, há uma relação que não pode se escrever. É uma relação de não relação. Isso inscreve uma oposição radical entre escrita e real. Se uma articulação é possível entre escrita e real, isso supõe que a escrita passe pelo significante, pela palavra. É o que garante um fundamento à prática analítica.

A questão é, contudo, mais complexa e mais sutil. Vejamos o que diz Jacques-Alain Miller nesse sentido:

“Fala-se de ato de palavra, fez-se disso até mesmo uma categoria da linguística pragmática, mas a tese de Lacan é, muito precisamente, de que o ato é de escrita. É pela escrita propriamente dita que nos acercamos do objeto a, e não pela palavra; pela palavra, isso somente é possível a partir do que ela comporta de escrita”.[15]

Essa frase procede de uma dialética complexa. O que se deve enfatizar aqui é que a palavra comporta uma escrita, exatamente como o relato de um sonho. A palavra, em suma, traz a escrita que traz a palavra. O ato “é” de escrita na medida em que essa escrita se torna um matema, uma escrita de um pedaço de real. Alguma coisa, portanto, se escreve pela palavra, seja a palavra do sonho, do lapso, do chiste ou do sintoma. Com a diferença de que ela comporta um real impossível que não pode se escrever.

As duas faces da letra

É preciso aproximar isso que estamos tratando do conceito de lalíngua, como escreve Lacan, em uma só palavra, para qualificar uma língua disjunta da comunicação. Mallarmé também observou a existência de uma palavra poética, que ele diz ser essencial, que é distinta da palavra que vem do cotidiano, feita para o jornal. É o que ele chama o duplo estado da palavra. Lacan, por sua vez, distinguia a propósito do discurso do analisante palavra vazia e palavra plena.

Os fragmentos da lalíngua da infância de Michel Leiris o marcaram e lhe serviram para elaborar nem mais nem menos do que toda uma biografia. É um dos melhores exemplos que se pode tomar para explicitar esse conceito, que se encontra entre a escrita e o real.

O primeiro dos quatro volumes que constituem a sua biografia e que Leiris chamou La règle du jeu, tem como título: Biffures. O primeiro capítulo dessa obra se intitula “…Reusement”. Esse termo remete à história bem conhecida: o pequeno Michel, tendo deixado cair um de seus soldadinhos de chumbo teve muito medo de que ele se quebrasse. Ao constatar que o brinquedo não havia se quebrado, ele exclamou, jubilando, “Flizmente”! [Reusement!], o que divertiu os adultos à sua volta. Explicaram-lhe, então, que não se diziaFlizmente [Reusement], mas Felizmente [Heureusement].

Vejamos o que Leiris observa nesse sentido:

“Apreender de uma só vez, em toda a sua integridade, essa palavra que eu sempre havia deformado, toma a forma de uma descoberta, como o brusco rasgar de um véu ou como a explosão de alguma verdade. Eis como esse vago vocábulo foi, por acaso, promovido ao papel de elo de todo um ciclo semântico. Ele não é mais uma coisa minha. Eis que, no espaço de um fulgor, ele se tornou coisa compartilhada — ou, se preferirmos — socializada”.[16]

Que um termo seja compartilhado isso é algo muito importante para Leiris, que, em sua biografia, procura saber como integrou as palavras de lalíngua numa linguagem compreensível e como esperou, assim, conhecer o mundo, os outros e, quem sabe, talvez, fazer grandes descobertas. Mas ele acrescenta: “a linguagem articulada, tecido aranhoso das minhas relações com os outros, me ultrapassa, estendendo por todos os lados as suas antenas misteriosas”.[17] Podemos multiplicar os exemplos sobre os quais Leiris trabalhou. Citemos o título do terceiro capítulo, Habillé-en-cours, que ressoa com Boulogne Billancourt, região próxima de Auteil, onde ele morava. Outro termo ainda é “Paranoizeuses”, que ressoa com paroles oiseuses [palavras vazias].

Que lição tirar disso? Esses termos que capturam a criança são palavras ouvidas. Esses sons e essas “deformações” nos remetem a uma dimensão imaginária e só se precisam pela passagem à escrita, que por sua vez nos situa na ordem do simbólico, seja pelo viés das correções dos adultos, seja pela própria escrita de Leiris, uma vez adulto. Encontramo-nos novamente entre o dito e o escrito. Onde situar o real em tudo isso?

Olhemos mais de perto os títulos dos quatro volumes que o mobilizaram durante vinte e oito anos: Biffures(1948), Fourbis (1955), Fibrilles (1966) e Fêle bruit (1976). Duas letras, B e F, estão presentes em todos os títulos e parecem estruturá-los. Leiris não deixou de escrever após 1975, nos deixando uma grande obra. Chamo a atenção para um de seus últimos livros publicados, que é um puro deleite: Langage tangage.Podemos verificar aí como ele continuou brincando com as palavras e as letras, porém, de outra maneira. Sem procurar interpretar, eu enfatizo a importância da letra nessa escrita que se joga sempre entre o dito e o escrito.

Existe uma outra faceta da letra, diferente da passagem de lalíngua para a língua socializada. É o que eu chamo de afeto do significante ou da letra. Um capítulo de Biffures se intitula “Era uma vez…”, e o primeiro parágrafo situa a primeira vez desse era uma vez. Leiris prestava seu serviço militar no Marrocos. Era a época da drôle de guerre.[18] Ele avalia a importância dessa expressão a fim de opô-la imediatamente a outras. Assim, o termo jadis é, diz ele, um ouro lendário semelhante aos tesouros da cidade de Ys, cidade também lendária, tal como Sodoma e Gomorra, destruídas por causa dos pecados de seus habitantes. Ao lado de jadis há a expressão naguère, palavra que tem uma tonalidade de lamento, que é quase alegre, “como aquilo que não pode senão ser esquecido”. Há também a palavra autrefois,[19] mais afetuosa, fora de moda e familiar, como era uma vez ou, ainda, como a foi du charbonnier.[20] Nenhum desses três advérbios, acrescenta Leiris, abre o parênteses onde pode vir se instalar o devaneio do era uma vez. “É uma fórmula tradicional que evoca tempos à margem da história”,[21] ouvidos frequentemente em sua infância.

O que chamo de afeto do significante ou da letra está no fundamento do cratilismo, onde uma palavra tem tal cor ou tal perfume, o que traz uma certeza quanto a sua significação. Para Mallarmé, é a palavra — digamos, o significante — que “cria as analogias das coisas por analogias de sons, é a fonia que importa mais ao poeta para designar as coisas”.

Cratilismo é uma palavra extraída de um diálogo de Platão entre Hermógenes e Crátilo, e que traz o nome deste último. Sócrates opõe duas teses sobre a verdade da linguagem. Hermógenes defende que os nomes são justos em função de uma convenção. Crátilo, por sua vez, defende que os nomes são justos por natureza. Haveria, em suma, um vínculo intrínseco entre esse som e aquele significado. Não existe, portanto, para ele, o que a linguística chamou de arbitrário do signo, mas sim uma relação natural. Dessa forma, para Hermógenes, mesa se diz “mesa” em francês por convenção prévia. Crátilo alega, em sentido contrário, que a palavra é fundada na coisa, que existe uma relação natural que remete do significante ao significado. Assim, a palavra “porco” estaria, desde sempre, destinada a designar o porco, porque ela remete a essa coisa suja e má, tal como estamos acostumados a imaginar o porco. Afinal de contas, por que a palavra flor não designaria o porco? Esse tipo de interrogação pode levar muito longe.

Não é novo que falemos assim da escrita e da poesia. Pensemos no soneto Vogais, de Rimbaud, que marcou a sua época: A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, ainda desvelarei seus mistérios latentes.

Em sua obra dita pedagógica sobre as “palavras inglesas”, Mallarmé procura a significação de cada letra desde a sua origem. Não apenas das vogais, mas também de todas as consoantes. Ele generaliza assim a teoria do cratilismo.

A letra científica

Deixemos de lado a letra dos “homens de letras” e passemos aos homens de ciência. Tomemos um único exemplo, o da equação da relatividade de Einstein, que se escreve e = mc². Essa equação, formulada em 1905, significa que uma partícula isolada de massa “m” possui uma energia “e” dada pelo produto de “m” pelo quadrado da velocidade da luz.

Dificilmente se imagina que Einstein tenha escolhido essas letras por suas cores ou perfumes. Passamos, assim, a outro tipo de escrita e, se mudássemos alguma coisa nessa fórmula, estaríamos às voltas com um universo bem diferente. O termo real toma, a partir de então, uma acepção mais radical. Poder alterar ou reescrever essa equação é fazer uma nova revolução científica em relação à revolução antecipada por Einstein.

Dito isso, Lacan associa o que ele chama “o momento de Freud, às […] passadas de um Newton, de um Einstein, de um Planck […] no sentido de que todos esses campos se caracterizam por traçar no real um sulco novo em relação ao conhecimento que se poderia atribuir, por toda a eternidade, a Deus”.[22] Assim, Freud traça, ele também, um sulco no real. Lembremos que 1905 é o ano de seu escrito sobre a pulsão. Lacan traz uma precisão interessante no Seminário 20: “[…] nada do que eu pudesse, no quadro, lhes escrever das fórmulas gerais que ligam […] a energia e a matéria, por exemplo, as últimas fórmulas de Einstein, nada disso se mantém se não o sustento com um dizer que é o da língua”[23].

Dessa forma, mesmo as fórmulas científicas mais sofisticadas não poderiam se manter sozinhas se não fossem sustentadas por um dizer. O que é totalmente surpreendente, pois isso equivale a dizer que não se poderia separar esse tipo de “letras” científicas dos significantes. Temos, assim, uma inversão de nosso proceder analítico habitual, que parte do significante para interrogar o estatuto da letra. Resta que o significante e a escrita da letra como real se encontram, desse modo, intrinsecamente enlaçados.

Einstein operou uma revolução científica com suas pequenas equações, que permitem que possamos enviar naves para o espaço esperando nelas viajar como se estivéssemos num avião. Mas o que dizer da energia e da matéria fora do campo da ciência? Não se pode responder a isso senão pela via poética ou analítica, onde matéria e energia são transportadas pelas palavras da língua. As palavras são, de fato, matéria. Lacan chega a dizer que esse é o seu materialismo. Ele inventa, aliás, um neologismo para expressá-lo, o materialismo se torna “motérialisme”.[24] Quanto à energia dessas palavras, basta elevá-las à dignidade de significantes para se ter uma ideia disso. Elas podem, com efeito, inibir, angustiar ou levar um sujeito em direção ao que se chama sublimação. É toda uma vida e toda uma obra que está eventualmente em jogo.

A escrita e o real na teoria analítica

Eu gostaria de evocar as lições de Jean-Claude Milner sobre a letra.

“A invenção teórica apta para se apreender a estrutura enquanto ponto de enlaçamento entre a psicanálise e a ciência moderna será uma teoria geral da letra. Ela comportará duas partes: uma teoria do matema, como letra própria de um saber transmissível, e uma teoria do escrito como teoria de toda letra possível. Não se deverá confundir, portanto, a letra do primeiro classicismo lacaniano, derivada da teoria do significante, e a letra do segundo classicismo, objeto teórico autônomo”.[25]

Vejamos como a escrita funciona na teoria analítica, tal como Lacan a elaborou. A partir de 1971 e do Seminário De um discurso que não fosse semblante, é que se pode encontrar as indicações mais precisas sobre isso. Encontramos nesse seminário uma afirmação esclarecedora: “Meus escritos […] representam uma tentativa, uma tentativa de escrito, como fica suficientemente destacado pelo fato de isso ter levado a grafos”.[26]

Impossível não se deter diante de tal frase. Em resumo, são os grafos, bastante numerosos, que vão constituir escritos para Lacan. Anotemo-los, para começar. Encontramos uma lista desses grafos com um comentário estabelecido por J.-A. Miller ao final do volume dos Escritos. Há inicialmente a rede das sobredeterminações que acompanham A carta roubada, há o esquema chamado “esquema L” e o “esquema ótico” dos ideais das pessoas, há também o “esquema R”, reproduzido nos esquemas clínicos de Schreber e de Sade. Finalmente, há os grafos do Desejo. Uma coisa que merece ser enfatizada é que, no conjunto de seus escritos, o que faz escrita para Lacan são os grafos. Procurar o escrito nos sonhos, na literatura ou na poesia é uma coisa, dizer que é o grafo que constitui um escrito é outra coisa, porque se distingue melhor, talvez, o sulco do real.

Se nos detivermos sobre o grafo mais importante, que é o grafo do desejo,[27] poderemos imaginá-lo sob a forma de uma grande árvore com duas raízes: a do sujeito $ e aquela do ideal do Outro I(A). Sem essas duas raízes, poderíamos nos perguntar como se orientar na vida. Uma vez colocadas essas raízes, a árvore fica salpicada de matemas que podemos imaginar como sendo pacotes de presentes de Papai Noel. Mas não é isso que Lacan visa. Ele procura dizer que, para além dos grafos, o que faz escrito são os matemas, dos quais ele nos diz que existem cem maneiras diferentes de lê-los. É o que se pode verificar com a fantasia fundamental de Freud Bate-se numa criança, ou essa outra que propus a vocês, ser uma mulher impedida.

Lacan, porém, vai ainda mais longe, ele não se detém nos grafos e matemas. Encontramos, de fato, noSeminário 18 esta proposição: “o cúmulo do escrito […] é uma letra pura e simples”.[28] No Seminário Mais, ainda encontramos outras precisões. De agora em diante é o recurso ao discurso analítico que serve de referência ao escrito, a saber, assim como a fórmula de Einstein, a referência às suas letras, que são o pequeno a, o grande A — que é um lugar, um lugar ao qual Lacan acrescenta uma dimensão, essa de S(Ⱥ)que: “como lugar, ele não se sustenta, que ali há uma falha, um furo, uma perda”[29] — e, finalmente, Ф. Daí a sua conclusão: “a escrita não é, de modo algum, do mesmo registro, da mesma cepa […] que o significante”.[30] É preciso, por fim, evocar o nó borromeano, o último escrito de Lacan, e que produz um modo de escrita totalmente inédito.

Da escrita do real?

Para abordar a importante questão do estatuto do real, proponho distinguir dois tipos de real, se posso dizer assim.

Há uma dimensão do real que procede da pulsão que não cessa de não se escrever, de se repetir, até que alguma coisa seja simbolizada e tempere um pouco o gozo. Podemos nos referir aqui a esta proposição maior de Lacan: a fantasia do neurótico se reduz à pulsão.[31] Essa fórmula é surpreendente na medida em que fantasia e pulsão se escrevem por meio de dois matemas diferentes. Temos, por um lado: $ <> a, e por outro lado: $ <> D. Na fantasia, a relação do sujeito se dá com o objeto e, no nível da pulsão, a sua relação de dá com a demanda, a sua ou aquela do Outro. No grafo do desejo, com efeito, o vetor da fantasia alcança, por um lado, no andar inferior, um significado do Outro, ou todas as outras significações que se queira e que pululam em torno da fantasia; por outro lado, no andar superior, esse vetor alcança a pulsão. Na fantasia e na pulsão alguma coisa funciona enquanto necessária; eis por que isso pode se escrever.

Mas há, evidentemente, também essa outra dimensão do real como impossível de se escrever como relação sexual. Esse impossível se esclarece de diversas maneiras segundo as estruturas clínicas. De maneira radical, na psicose, o desejo não pode ser suplementado a não ser por um delírio. A histérica, por sua vez, está às voltas com um desejo insatisfeito, e o obsessivo, com um desejo impossível. A insatisfação e a impossibilidade podem ser escritas? Podemos dizer que o sujeito pode somente tentar haver-se com esse obstáculo, em vez de permanecer inibido pela insatisfação ou pelo impossível. Esse é todo o efeito de um tratamento analítico.

Em Lituraterra, Lacan precisa: “a escrita é, no real, o ravinamento do significado”.[32] Escavar [raviner] é, segundo o Le Robert, escorrer com força, cavar sulcos no solo e na terra. O ravinamento constitui, portanto, uma formação de sulcos no solo pelo escoamento das águas. Assim, a escrita sulca a língua com todos os tipos de significados. Foi o que vimos com os exemplos extraídos de Michel Leiris.

Uma outra maneira que tem Lacan de insistir sobre a distinção entre o significante e a letra é isolando o litoral que os separa. Podemos, neste ponto, nos apoiar no exemplo considerado por Lacan da “cena primitiva” do Homem dos lobos, cena do sonho onde ele percebe, pela janela aberta, uma árvore em cujos galhos doze lobos o olham. Esse sonho é rico por todas as palavras que o acompanham, mas a cena pode se reduzir à letra V, movimento das coxas abertas que batem em um movimento sexual, “cena tal que nela pode soar o V romano da quinta hora”.[33] Podemos aproximar dessa reflexão a evocação do cinco que escande o poema de Federico Garcia Lorca, O ferimento e a morte, escrito por ocasião da morte de seu amigo, o toureiro Ignacio Sanches Mejias: “eram cinco horas em todos os relógios”.[34] Em sua peça de teatro Bodas de sangue, essa é a hora em que o crime foi cometido. Cinco horas é, de fato, a hora da tragédia de Lorca, ou do drama do Homem dos lobos. “É a letra como tal que serve de apoio ao significante, segundo sua lei de metáfora”.[35]

Lacan prossegue: “o sujeito é dividido pela linguagem como em toda parte, mas um de seus registros pode se satisfazer com a referência à escrita, e o outro, com a fala”.[36] Não se pode esperar encontrar um dito mais esclarecedor. Com a palavra, trata-se da busca de uma significação; com a escrita, encontra-se um real fora do sentido.

Não posso desenvolver todas as proposições de Lacan sobre a escrita. Entretanto, é impossível não evocar o Seminário sobre Joyce onde se encontra a indicação precisa de que “a escrita de letrinhas matemáticas é o que suporta o real”.[37] Lacan conclui que “quando se escreve pode-se muito bem tocar o real, mas não o verdadeiro”.[38]

Essa frase é uma resposta a minha questão inicial dizendo respeito à diferença entre as palavras ditas no divã e a escrita sobre a página branca. Do lado do divã, toca-se o verdadeiro, que opera entre significante e significado, e, do outro lado, do lado da escrita, toca-se o real.[39]

Uma precisão se impõe, ainda. Em Lituraterra, Lacan distingue o significante como semblant da letra, que, por sua vez, não é da ordem do semblant. Precisamente porque ela não é pluriunívoca, mas unilateral. É por essa função de ser sempre a mesma que se pode sentir as suas afinidades com o registro do real. Não é oestá escrito enquanto isso fala, mas enquanto isso funciona.

O enlaçamento entre escrita e real é uma questão bem complexa, cujo desenvolvimento exige diversos desvios. Quer a escrita seja aquela da ciência, da poesia ou das formações do inconsciente, o real em jogo será diferente de uma disciplina para outra. Aquele da ciência, Lacan o evoca através do saber que há no real, mas esse real é diferente do real da poesia ou das formações do inconsciente, que se distingue por comportar uma parte de verdade e uma parte de gozo. Tudo não pode ser dito da subjetividade humana. É isso que fascina os poetas e os artistas, que não cessam de girar em torno do indizível e da falha no Outro. O que chega a se escrever passa entre o significante e a letra. O significante chamando uma parte de verdade, a letra permanecendo o índice do impossível.

Para concluir, eu diria que é possível escrever o nosso título sob a forma de um matema: E <> R. Assim, as relações entre a escrita e o real procedem quer do necessário, quer do impossível.

Para interrogar esse título, parti da ideia do real como causa, ou seja, daquilo que produz efeitos. É a produção de diferentes tipos de efeitos que permite falar de terapia ou de psicanálise. Quanto à natureza dessa causa, ela foi modulada de diferentes maneiras ao longo do ensino de Lacan.[40]

Retomo aqui meu ponto de partida para completá-lo. Parti da imago que produz efeitos, a qual não se pode usar para obter efeitos terapêuticos. O real, nessa perspectiva, pode ser definido como imaginário.

Jacques-Alain Miller afirma, por sua vez, que o real é o simbólico. Com efeito, do ponto de vista da causalidade, a psicanálise foi fundada sobre a aposta de que o simbólico produzisse efeitos sobre o sujeito. Eu gostaria de lembrar este exergo no discurso de Roma: Cause sempre. (Lema do pensamento “causalista”).[41] A fórmula de Miller em seu curso deste ano é mais precisa: “o real é a estrutura da linguagem”.

O passo dado por Lacan a partir do Seminário A ética da psicanálise gira em torno de das Ding, que se torna o nome do real na medida em que ele exclui toda representação. A partir daí Lacan desenvolverá a questão do gozo a partir do objeto a, o que permite dizer que o real é a fantasia.

Eu havia tentado anteriormente responder o mais simplesmente possível à questão do que é o sinthoma, e cheguei à seguinte fórmula: o sinthoma é a resposta que o sujeito dá ao sintoma. Por exemplo, para um autor, é a obra que ele produz que constitui o seu sintoma e a resposta que lhe é dada. Miller tem uma proposição bastante esclarecedora: “o sinthoma é o real e sua repetição”.[42] Não se pode dizer as coisas de maneira melhor. Entre sintoma e sinthoma, o gozo se positiva, porque ele é, a partir de então, permitido.

Daí decorrem as três fórmulas que podemos dar do enlaçamento entre escrita e real:

E <> R

$ <> a, ou: “a fantasia é uma função subjetivada do real”,[43] segundo a proposição de Jacques-Alain Miller.

$ <> D, onde o real da pulsão pode então ser definido como “exigência pulsional”.[44]

O que está em jogo a partir de então é a questão do gozo. É o que Freud já havia enunciado: quando se conheceu o gozo uma vez, sempre se procura obtê-lo. É isso que vem se inscrever entre escrita e real. Eu lhes convido, desde agora, a se deixarem capturar por uma fórmula que lhes diga alguma coisa, a não deixarem de escavá-la, em seguida, em função do interesse e da prática de vocês.

 

Tradução: Yolanda Vilela 

Derivas analíticas agradece a Joseph Attié e a Philippe Stasse, diretor de publicação da revista Quarto, por cederem os direitos de tradução e publicação do artigo Écriture et réel, publicado originalmente na revista Quarto, n. 101-102: L’art  est une chose rare. Bruxelas: École de la Cause Freudienne, 2012.

 

NOTAS

Joseph Attié é psicanalista membro da École de la Cause Freudienne (ECF), da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Nasceu em um país do Oriente Médio e foi criado em duas línguas: o árabe e o francês. Foi esta última que finalmente prevaleceu e o levou a Paris para dar prosseguimento aos seus estudos e começar uma psicanálise. Uma dupla interrogação sempre o acompanhou, ela se reporta à psicanálise e à poesia. Muitos enigmas e tentativas de respostas resultaram daí. Mallarmé O livro conjuga essas duas orientações. Entre as suas publicações, se destacam: Mallarmé le livre. Paris: Éditions du Losange, 2005. Mallarmé O livro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. A questão do simbólico. Publicação do Seminário do Campo freudiano. Salvador: Fator, 1987. Une touche de réel. Ouvrage collectif sur la sublimation. Paris: Z’Edition, 1990. NOUI: Poème. Ouvrage bibliophillique réalisé avec le peintre François Imhoff. Ité: 2006.

[1] Conferência pronunciada em 17 mar. 2011, no CRIPSA – Charleroi no contexto de uma oficina sobre “escrita e real”. Texto estabelecido por Pascale Simonet.

[2] O Curso de Orientação Lacaniana de Jacques-Alain Miller ao qual Joseph Attié se refere se intitula: “L’Être et l’Un” (O Ser e o Um), de 2010-2011. (N.T.).

[3] LACAN, (1946) 1998, p. 152-194.

[4] LACAN, (1946) 1998, p.189.

[5] LACAN, (1953) 1998, p. 237-324.

[6] LACAN, 2005.

[7] BONNEFOY, 2010, p. 39.

[8] QUIGNARD, 2002.

[9] LACAN, 1975, p. 81-82.

[10] MALLARMÉ, 1945, p. 310.

[11] MALLARMÉ, 1998, notice p. 1138.

[12] LACAN, 1992, p. 12.

[13] PROUST, 1948, p. 11.

[14] No original “Once upon a time and a very good time it was a moocow…”. JOYCE, J. Um retrato do artista quando jovem. Tradução de Bernardina Silveira Pinheiro São Paulo: Siciliano, 1992, p. 17. (N.T.).

[15] MILLER, le 14 nov. 1986, inédit. Cité par GAULT, J.-L.

[16] LEIRIS, 1975, p. 12.

[17] LEIRIS, 1975, p. 12.

[18] O período da chamada Drôle de Guerre é compreendido entre 03 de setembro de 1939 (data da declaração de guerra da Grã-Bretanha e da França à Alemanha) e 10 de maio de 1940 (data da invasão da Bélgica e dos Países Baixos pelas tropas alemãs). Essa expressão deve o seu nome à inação das forças armadas aliadas diante da derrota da Polônia. Roland Dorgelès, correspondente de guerra, reivindicou a paternidade da expressão, que poderia também ser a tradução de Phoney War. Cf. <http://www.universalis.fr/encyclopedie/drole-de-guerre>. (N.T.).

[19] Jadis, naguère e autrefois são advérbios que podem, em um primeiro momento, serem tomados uns pelos outros, uma vez que todos os três remetem a um tempo passado: outrora, antigamente, antes, no tempo passado, etc. Joseph Attié chama a atenção para o fato de que cada um desses significantes toma um sentido bastante particular para Michel Leiris, embora nenhum deles acolha a singularidade veiculada pelo “era uma vez”. (N.T.).

[20] A expressão la foi du charbonnier se refere a uma espécie de fé cega, inquestionável, dessas que podem ter certas pessoas muito simples. (N.T.).

[21] LEIRIS, 1975, p. 139.

[22] LACAN, 1985, p. 122.

[23] LACAN, 1985, p. 165.

[24] “Moterialismo” (motérialisme) é um neologismo forjado por Jacques Lacan, que apresenta a contração das expressões “palavra” (mot) e “materialismo”, ou seja, materialismo das palavras. (N.T.).

[25] MILNER, 2002, p. 149. (Cf.: “L’invention théorique propre à saisir la structure en tant que point de nouage entre la psychanalyse et la science moderne sera une théorie générale de la lettre. Elle comportera deux parties: une théorie du mathème, comme lettre propre à un savoir transmissible, et une théorie de l’écrit, comme théorie de toute lettre possible. On ne confondra donc pas la lettre du premier classicisme lacanien, dérivée de la théorie du signifiant, et la lettre du second classicisme, objet théorique autonome).

[26] LACAN, 2009, p. 57.

[27] LACAN, (1960) 1998, p. 831.

[28] LACAN, (1932) 1998, p. 76.

[29] LACAN, 1985, p. 41.

[30] LACAN, 1985, p. 41.

[31] LACAN, (1960) 1998, p. 838.

[32] LACAN, (1971) 2003, p. 22.

[33] LACAN, (1971) 2003, p. 23.

[34] Cf.<www.espritsnomades.com/sitelitteratureslorcallanto/garcialorca.html>.

[35] LACAN, (1971) 2003, p. 24.

[36] LACAN, (1971) 2003, p. 24.

[37] LACAN, 2007, p. 66.

[38] LACAN, 2007, p. 78.

[39] MILLER, 1998. Inédito.

[40] MILLER, 2011. Inédito.

[41] LACAN, (1953) 1998, p. 248.

[42] MILLER, lição de 09 fev. 2011. Inédito.

[43] MILLER, lição de 02 fev. 2011. Inédito.

[44] MILLER, lição de 02 fev. 2011. Inédito.

 

REFERÊNCIAS

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