ESTÉTICA, CLÍNICA E POLÍTICA EM “DAS UNHEIMLICHE

 

GILSON IANNINI 

 

Em 12 de maio de 1919, em carta a Ferenczi, Freud anuncia, numa única sentença, ter realizado três tarefas quase simultaneamente: “eu não apenas concluí um rascunho de ‘Além do princípio de prazer’, que está sendo copiado para você, mas também retomei mais uma vez o pequeno escrito ‘Das Unheimliche’, e, com uma simples ocorrência (Einfall) eu alcancei o fundamento psicanalítico da Psicologia das Massas”. Isso mostra, por si só, como estão imbricados no pensamento de Freud três dimensões aparentemente independentes umas das outras. Num dos vértices do triângulo, a bastante bem conhecida reformulação clínica e metapsicológica da teoria das pulsões; na outra ponta, a reflexão estético-literária, que suplementa a ambição científica de Freud de aspectos refratários àquela racionalidade; no terceiro vértice, a vertente política e social da psicanálise, que situa o sujeito na tênue linha que o liga e o separa entre o individual e o social. Essa imbricação triangular não é apenas o resultado de uma reconfiguração histórica, explicada em grande medida pelos diversos impactos que a Grande Guerra determinou, mas expressa uma solidariedade, um solo comum da experiência freudiana.

De fato, a Grande Guerra separou o mundo, as vidas, as ilusões, em suma, redefiniu nosso sistema de evidências, nossa partilha do comum, tornando visíveis coisas antes encobertas pelo véu da invisibilidade. Separou também a própria história da psicanálise. Para início de conversa, o hiato entre os Congressos da Associação Internacional de Psicanálise foi dilatado enormemente. Entre o IV e o V Congresso Internacional de Psicanálise, ocorridos, respectivamente, em Munique (1913) e Budapeste (1918), toda a trama interna da psicanálise foi reconfigurada. Não apenas porque a clínica se deparou com traumas diferentes daqueles que emolduraram os anos dourados da era da interpretação: os sintomas histéricos e suas reminiscências de prazeres inconfessos perderam sua proeminência, diante do enigmático retorno de experiências de desprazer, relatados pelos combatentes. O princípio do prazer era insuficiente para dar conta dessa nova clínica. Mas não apenas isso. O paradigma estético até então em vigor parece entrar em colapso. A publicação de “Das Unheimliche” é uma prova contundente disso. O infamiliar aborda uma estética que, longe de reconciliar o sujeito com um horizonte ideal de apaziguamento da pressão pulsional, o confronta com um regime estético que o desaloja, que faz com que não nos sintamos mais em casa. Nem mesmo dentro de nossa própria casa. Com o Unheimlich, Freud destaca que aquilo que produz a maior inquietação e estranheza é justamente o heimlich (íntimo-secreto), linguisticamente, o aparente oposto de unheimlich. Afinal, como escreve Marguerite Duras, “é numa casa que a gente se sente só. Não do lado de fora, mas dentro”. O angustiante, portanto, não é o estrangeiro, mas, ao contrário, nossa intimidade mais remota, mais, como diria Lacan, êxtima. O caráter político dessa matriz estética não poderia dar um recado mais certeiro. O que tememos, aquilo que odiamos, não é o mais exterior a nós, mas o mais exterior em nós.

Vale a pena retomar em brevíssimas linhas os dois artigos que aludem aos IV e V Congressos, presididos, diga-se de passagem, por Jung e Ferenczi, respectivamente, em 1913 e 1918. “Transitoriedade” foi escrito em vista de uma demanda recebida em novembro de 1915 da Associação Goethe de Berlim. O pano de fundo dessa publicação era a arrecadação de fundos para a reconstrução da Prússia Oriental, devastada pela guerra. Em especial, tratava-se de uma peça de propaganda: quando os inimigos retratavam o povo alemão como bárbaros e violentos, tratava-se de recuperar a Alemanha como um povo de cultura (Kultur). A tonalidade de muitas contribuições é de cunho nacionalista, mas Freud prefere referir seu ensaio ao país de Goethe, operando um ligeiro, mas decisivo deslocamento. Esse deslocamento esvaziaria qualquer latente nacionalismo, apostando ao contrário na possibilidade de reconstrução de tudo aquilo que embora parecesse sólido, era no fundo tão frágil quanto uma paisagem de verão: a neutralidade da ciência, as realizações da arte e da cultura, a aposta na superação das diferenças entre povos e raças. Mas a aposta política de Freud é clara: devemos fazer o luto dessas instituições, de seu caráter imaginário, narcísico, porque é apenas através de sua perda que elas podem sobreviver. Nesse sentido, além de ser um texto relevante para a discussão estética e literária sobre o tempo, o caráter político do ensaio não pode ser negligenciado.

O ensaio relata um passeio em companhia de “um amigo taciturno” e de “um jovem, mas já famoso e conhecido poeta”. A bibliografia secundária não tardou a identificar esses dois personagens como Lou Andreas-Salomé (curiosamente disfarçada no gênero masculino) e Rainer-Maria Rilke. A “florescente paisagem de verão”, por sua vez, nos remeteria às Dolomitas, uma cadeia montanhosa dos Alpes orientais no norte da Itália, que Freud conhecia desde sua temporada como naturalista em Trieste. O verão em questão seria o de agosto de 1913, pouco antes da eclosão da Grande Guerra. Pelo relato de Freud, podemos imaginar uma caminhada lenta e meditativa, observando as paisagens paradisíacas das montanhas, em meio a flores e cogumelos, que o psicanalista adorava apreciar. Quando lemos o texto, quase podemos imaginar a cena, quase podemos reconstruí-la. Na verdade, podemos quase até mesmo fruir das mesmas sensações que o autor evoca. Reside aí uma das virtudes literárias de Freud. Trata-se de um ensaio atravessado por um lirismo raramente encontrado em outros textos: é quase uma elegia.

Mas o fato é que Freud encontrou-se com Lou e Rilke quando do IV Congresso da Associação Internacional de Psicanálise, ocorrido em Munique. Àquela altura, Freud estava preocupado com os destinos da psicanálise, na época da máxima distensão com o príncipe herdeiro, Jung. Rilke, por sua vez, estava em Munique por razões diversas: tentava recuperar a fugidia inspiração para escrever. O mais provável, contudo, é que o passeio romântico à trois na natureza nunca tenha ocorrido. Talvez a conversa tenha sido tão efêmera quanto um encontro no café do hotel em que estavam hospedados, talvez em meio a outros personagens igualmente sentados à mesa, talvez no burburinho dos intervalos dos congressos psicanalíticos. O encontro a três, nas montanhas alpinas, é, muito provavelmente, uma ficção literária de Freud.

Já em “Caminhos da terapia psicanalítica”, apresentado no V Congresso, Freud surpreende a audiência com uma proposta radical de estender a psicanálise a populações carentes de recursos financeiros, através de clínicas gratuitas que funcionariam ainda como institutos de formação, o que efetivamente redundou na criação de diversas policlínicas nos anos seguintes. Preocupado em definir a especificidade da terapia psicanalítica, Freud opõe-se à Escola Suíça e à Escola Americana. Escreve Freud: “Recusamos enfaticamente transformar o paciente, que se entrega em nossas mãos buscando ajuda, em nossa propriedade, formar o seu destino para ele, impor-lhe os nossos ideais e, com a altivez do Criador, formá-lo à nossa semelhança, para a nossa satisfação”[1]. Os temas do ideal e da identificação surgem nesse contexto clínico, não apenas como dificuldades técnicas, mas, principalmente, como postura ético-política: “Porque pude ajudar pessoas com as quais não tinha qualquer laço de raça, educação, posição social ou visão de mundo, sem incomodá-las em suas peculiaridades”[2]. Segundo Freud, submeter o tratamento analítico a ideais externos, ou oferecer o eu do analista como modelo de identificação, ou ainda impor uma Weltanschauung “é apenas violência, mesmo que encoberta pelas mais nobres intenções”[3]. Ora, não é difícil perceber que essa importante temática da violência da interpretação surge justamente nesse contexto acima aludido. E que desemboca, não tarda, na inflexão levada a efeito em “Psicologia das Massas e análise do eu”. Ou seja, uma reflexão eminentemente clínica acerca da idealização e da identificação culmina numa reflexão social de grande envergadura. No meio disso tudo, é toda uma nova estética que se impõe a Freud, à qual ele dedicou nada mais nada menos do que seu artigo “das Unheimliche”. O infamiliar é, ao mesmo tempo, a mais paradigmática incursão de Freud na literatura e a maior contribuição da literatura à clínica freudiana.

Uma leitura superficial de “O infamiliar” poderia sugerir que o ensaio hesita quanto aos caminhos e estratégias de amarração do tema. Sim, de certa forma, o percurso é sinuoso. Porém, a démarche de Freud é clara. Ele começa solicitando apoio à autoridade da ciência. É esse o sentido de sua referência, logo no início do ensaio, a um artigo de Ernst Jentsch, publicado numa Revista Psiquiátrico-Neurológica. Tal recurso à ciência mostra seus limites rapidamente. Na estética filosófica também, Freud não encontra grande alento, mas observa o que ela despreza, o que ela rejeita. Mais ou menos como Lacan insiste que a psicanálise lida com os restos da formalização científica, Freud, aqui, lida com aquilo que a estética coloca à margem: não o belo ou o sublime, mas o angustiante, o aterrorizante, o infamiliar. Daí em diante, Freud recorre a outros saberes. Por um lado, recorre aos grandes léxicos, como o de Sanders e o dos irmãos Grimm, por outro, ao Dichter, no caso, E. T. A. Hoffmann em seu conto fantástico “Homem da Areia”. Ciência, Lexicografia, Filosofia Estética e Literatura aqui se combinam na prosa freudiana sob inegável influência de um romantismo bastante singular, representado por Hoffmann. Cem anos nos separam do ensaio de Freud; cem anos separavam o ensaio de Freud do conto de Hoffmann. E, no entanto, o efeito da atual infamiliaridade de ambos desconcerta o leitor contemporâneo. “Pertence verdadeiramente ao seu tempo”, escreve Agamben na esteira de Nietzsche, “aquele que não coincide perfeitamente com ele nem se adequa às suas exigências e é, por isso, nesse sentido, inatual; mas, precisamente por isso, exatamente através dessa separação e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que outros, de perceber e de apreender o seu tempo”[4]. Nossa realidade atual não é transparente a si. Nada como uma luz inatual dos textos freudianos para podermos, como vaga-lumes, viver em tempos obscuros. Afinal, vaga-lumes emitem luz, mas desaparecem na noite; estão sempre um pouco à frente de onde nossos olhos os surpreendem[5]. É por isso que toda estética implica uma política. A clínica implica a ambas.

Referências:

FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019). (Coleção Obras incompletas de Sigmund Freud). Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

[1] FREUD, S. Caminhos da terapia psicanalítica. In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2016. p. 198. (Coleção Obras incompletas de Sigmund Freud).

[2] Idem.

[3] FREUD, S. Caminhos da terapia psicanalítica. In: Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2016. p. 199. (Coleção Obras incompletas de Sigmund Freud).

[4] AGAMBEN, G. Nudez. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2014. p. 22.

[5] Cf. DIDI-HUBERMAN, G. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

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