Resenha

Falo no jardim: Priapéia grega, Priapéia latina,

organizado por João Angelo Oliva Neto

Anamáris Pinto e Lúcia Grossi

 

Jacques Lacan, ao se referir à aparição do termo falo na Antiguidade grega, indica que nos textos de Aristófanes, Heródoto, Luciano, entre outros, o falo de modo algum é idêntico ao órgão como acessório do corpo, seja como prolongamento, membro ou órgão em funcionamento. Ele destaca que o uso mais predominante da palavra diz respeito ao “seu emprego enquanto simulacro ou insígnia, seja qual for a maneira como ele se apresente”[1]. É ainda nessa vertente que Lacan irá dizer que “não foi sem razão que Freud extrai-lhe a referência do simulacro que ele (o falo) era para os antigos”[2].
 


Dança báquica Opus sectile do terceiro quarto do século I d.C. Mênade e jovem dançam diante de uma herma de Priapo, de uma estátua feminina e de um bétilo. Na imagem a participação de Priapo no culto de Baco/Dionísio.
 

O interesse mais imediato da leitura do livro de João Angelo para um psicanalista orientado pela leitura de Freud e Lacan concentra-se no primeiro capítulo do livro que apresenta Priapo como um “Deus Menor”. É um capítulo muito rico em termos históricos e que pode nos ajudar a pensar as dimensões simbólica e imaginária do falo em psicanálise.

Falo no jardim: Priapéia grega e Priapéia latina é um livro “para quem gosta de poesia antiga”, como nos diz o professor, tradutor e pesquisador João Angelo Oliva Neto. São poemas extraídos de um período que se estende do século III a.C. ao século VI d.C., que têm como tema central a figura de Priapo, deus menor, itifálico (representado em estado permanente de ereção) e ícone da fecundidade.



Imagem I - Mercúrio/ Hermes representado como deus itifálico. Afresco de Pompéia do século I d.C. Nápoles, Museo Archeologico Nazionale.

 


Imagem II - Priapo pesando o próprio falo. Afresco da Casa dos Vetti, em Pompéia.
 

O livro traz texto e tradução em verso dos 86 poemas anônimos da Priapeia latina assim como dos poemas latinos de autoria determinada – Catulo, Horácio, Virgílio, Ovídio, entre outros –, além dos 37 poemas da Priapeia grega.

Segundo o autor, a maior parte dos poemas são jocosamente obscenos. Mas muitos poemas mais antigos, escritos em grego, apresentam a dimensão religiosa do falo como “símbolo de plenitude e exuberância procriadora nas esferas da vida vegetal, animal e humana” (p. 13). As imagens de Priapo que compõem o livro fazem parte das coletâneas dos poemas priapeus e se integram à percepção também visual dessa divindade (p. 13).


Figura 19 (Página seguinte). Detalhe de vaso com figuras vermelhas: mulher espargindo água sobre falos que brotam do solo. Cerca de 430-420 a. C. Vaso de Hasselman, E 810; altura: 66 cm. British Museum, Londres. O poder e o significado fecundante do falo são cultivados, nos dois sentidos do termo, a mostrar a reverência que lhe é devida: numa espécie de sinédoque figurada, aquela que fecunda, o falo, é religiosamente refundado.

A propósito da figura de Priapo, Oliva Neto nos indica que ela “originou-se das imagens fálicas diante das quais se desenvolviam as orgias dionisíacas” (p. 16). São festividades onde se realizava a falofória, procissão em que um enorme falo era transportado pelo falóforo, ou seja, o sacerdote “que porta o falo” (p. 16). Tal culto “surgiu no século IV na Ásia Menor, na cidade de Lâmpsaco, localizada no que hoje se chama estreito de Dardanelos, na Turquia” (p. 16). Sabemos, através de documentos arqueológicos, que Tucídides relata a existência de uma cidade litorânea e portuária de nome Priapo, cuja fundação alguns historiadores mais tarde vinculariam ao deus. Proveniente da região da Trácia, esse culto se estendeu ao mundo grego em razão das relações comerciais e culturais ocorridas com a helenização do Oriente por Alexandre, expandindo-se, então, por todo o Mediterrâneo. Um registro da época dos assim chamados primeiros Ptolomeus, descoberta na cidade de Tera, numa das ilhas do mar Egeu, traz os seguintes dizeres:

Eu, Priapo, chego a esta cidade de Tera;
eu, o nascido em Lâmpsaco, que traz duradoura riqueza.

Benfeitor eu vim e auxiliador
de todos os cidadãos e os residentes estrangeiros. (p. 15)
 

Embora várias designações tenham sido atribuídas ao ícone fálico (Tícon, Órtanes, Conísalo, Falo, Fales, Trifalo, Coniseio, Genetílide, Cineio), o nome que finalmente se firmou foi o de Priapo. Denominação especificamente helenística e alexandrina, Priapo jamais é aludido, observa Oliva Neto, como divindade no período arcaico e no período dito clássico da história e das letras gregas.

A presença de Priapo era constante, o leitor antigo o via por toda parte. Qualquer poema, ou seja, qualquer Priapeia deve conter imagens e efígies de Priapo, onde as imagens não são meras ilustrações, mas verdadeiras estátuas da divindade, e os epigramas são como uma fala.

Segundo atestam historiadores, o culto de Priapo se vincula ao relato de sua origem como fruto do encontro de Afrodite com Dionísio. O caráter desproporcional de seu membro era tomado, no relato mítico, como efeito da punição, por parte de Hera, deusa protetora do matrimônio, da promiscuidade de sua mãe. (p. 16)

Outro relato declara que Priapo teria nascido do encontro de Afrodite com Zeus. Nesse caso, a desproporção de seu membro também era pensada como efeito da punição de Hera, revoltada por seu nascimento ser obra do amor furtivo de Zeus. Hera temia que a criança, com a beldade da mãe e o poder do pai, pusesse em risco o equilíbrio entre todos os deuses olímpicos. Tocada no ventre pela mão maligna de Hera, Afrodite teria assim gerado uma criança disforme que abandonou nas montanhas, onde ela foi recolhida e criada por pastores. Dali se infere o aspecto rústico que a divindade exibe.

Por evocar fertilidade e abundância, a imagem de Priapo era colocada em locais diversos (para portos, encostas e praias), onde oferecia proteção e boa sorte, para navegantes e pescadores; bom augúrio, na viagem do além-túmulo; boa colheita, nas plantações. Sua imagem estava presente no espaço público.

 


 

Vale nesse ponto salientar o fato de que, em nítido contraste com o caráter supermasculino de representações em que se destaca apenas o falo, o Priapo do espaço público, quando não era herma fálica (fig. 7), era frequentemente representado como uma figura efeminada ou mesmo bissexuada, hermafrodita. Sua bissexualidade se representava na superposição de traços femininos ao membro viril, exibido pelo estiramento da túnica. Por englobar caracteres femininos e masculinos num único ser, essas exibiam a totalidade cósmica do culto orgástico dionisíaco.

Apesar, portanto, do falicismo hegemônico da figura de Priapo, nela também se materializa o princípio andrógino, conjunção que, longe de ser risível, continha um efeito de formosura.




 

Oliva Neto acrescenta, mais adiante, que o deslocamento do uso da imagem de Priapo, entre os séculos III e II a.C., do espaço público para o jardim, viria alterar radicalmente o caráter do deus. Nessa mudança, dois fatores se superpõem: a valorização do jardim nas escolas filosóficas e a provável influência desse hábito no espaço doméstico das elites e, por imitação, nas pequenas propriedades das classes inferiores. (p. 19) Ali se destaca o modo pelo qual os antigos gregos já pensavam a oposição natureza/cultura, apoiada na distinção entre o espaço do campo, em que prepondera a força e exuberância da physis, e o arranjo civil da vida pública, onde se organizam as regras da cultura. Nesse sentido, o jardim seria o espaço intermédio entre a Natureza e a Cidade, na forma de uma natureza organizada. (p. 19)

Nos dois últimos itens do primeiro capítulo encontramos mais elementos que explicitam a complexidade desse deus menor. O falo enorme e ereto significa a fecundidade, mas, por outro lado, fere a concepção de beleza fundada na proporção. O falo ereto é na verdade uma situação circunstancial, e a ereção prolongada destituída de prazer será considerada uma doença.

“Assim, ironicamente, o falicismo acaba por ser sinal de sua inferioridade, de sua humildade, conforme a origem bastarda que as narrativas mitológicas vieram a conferir-lhe.”, escreve Oliva Neto. (p. 30)

A última seção do primeiro capítulo tem um título instigante que toca diretamente o poder representativo da imagem: “O falo e a cruz”. Aí encontramos uma passagem de A cidade de Deus, de Santo Agostinho, em que não apenas Priapo, mas toda a lógica do politeísmo é atacada.

Entre os deuses pagãos que consenso há tão torpe, que Diana, virgem casta, não proíbe que se cultue, não digo Vênus, mas Priapo? Pois, se o mesmo homem quiser ser caçador e também agricultor, servirá a dois deuses, aos quais, porém, causará rubor construir templos vizinhos. Mas que interpretem Diana e sua qualidade como queiram, que interpretem também Priapo como deus da fecundidade de tal modo que a Juno envergonhe ter tal ajudante quando as mulheres dão à luz. Digam o que lhes agrade, interpretem o que saibam, mas contanto que todos os seus argumentos sejam perturbados pelo deus de Israel. Ele, porque proibiu que se cultuassem todos esses deuses e não foi proibido de ser cultuado por nenhum deles, porque preceituou, predisse e causou a destruição das imagens e dos ritos dos outros deuses, mostrou com suficiência que aqueles são deuses falsos e enganadores, e que ele é deus verdadeiro e veraz. (p. 32)
 

A substituição do falo pela cruz indica claramente o caminho da renúncia à sexualidade e a mortificação do corpo como caminho da salvação da alma.

Passemos então a alguns exemplos de Priapeia traduzidos por José Paulo Paes.

1. Priapeia grega

Poema 12 (Teócrito, Antologia Palatina, 9,338)
Dormes fatigado, Dafne, no chão juncado de folhas,
redes presas a estacas no alto da colina.
Mas caçam-te Pã e Priapo, cuja bela cabeça
é entretecida de heras da cor do açafrão;
os dois agora penetram na caverna. Vamos Dafne
expulsa a letargia do sono e foge, foge. 

2. Priapeia latina

Poema 66: Priapo a certa pudica
Para não veres meu emblema viril,
apartas a vista, como o pudor exige:
sem dúvidas porque o que temes olhar,
anseias por recebê-lo em tuas entranhas.
 

No capítulo 8, Oliva Neto nos traz a representação literária de um pouco prestigiado Priapo lusofônico. Vamos reproduzir aqui, para deleite do leitor, apenas o poema do baiano Gregório de Matos, único representante brasileiro, e o do português Caetano José da Silva Souto-Maior.

De Gregório de Matos - A umas freiras que mandaram perguntar por ociosidade ao poeta a definição do Priapo e lhes mandou definido e explicado nestas décimas 

Ei-lo vai desenfreado,
que quebrou na briga o freio,
todo vai de sangue cheio,
todo vai ensanguentado:

meteu-se na briga armado,
como quem nada receia
foi dar um golpe na veia,
deu outro também em si,
bem merece estar assi,
quem se mete em casa alheia.

Inda que pareça nova,
senhora, a comparação,
é semelhante ao furão,
que entra sem temer a cova:
quer faça calma, quer chova,
nunca receia as estradas,
mas antes se são tapadas,
para as poder penetrar,
começa de pelejar
como porco às focinhadas.

Este lampreão com talo,
que tudo como sem nojo,
tem pesos como relojo,
também serve de badalo:
tem freio como cavalo,
e como frade, capelo;
é cousa engraçada vê-lo
ora curto, ora comprido,
anda de peles vestido
curtidas já sem cabelo.

Quem seu preço não entende
não dará por ele nada;
é como cobra enroscada,
que em aquecendo se estende:
é círio, quando se acende,
é relógio, que não mente,
é pepino de semente,
tem cano como funil,
é pau para tamboril,
bate os couros lindamente.

É grande mergulhador,
e jamais perdeu o nado,
antes quando mergulhado
sente então gosto maior:
traz cascavéis como açor
e como tal se mantém
de carne crua também,
estando sempre a comer,
ninguém lhe ouvirá dizer,
esta carne falta tem.

Se se agasta, quebra as trelas
como leão assanhado,
tendo um só olho, e vazado,
tudo acerta às palpadelas:
amassa tendo gamelas
doze vezes sem cansar,
e traz já para amassar
as costas tão bem dispostas,
que traz envolto nas costas
fermento de levedar.

Tanto tem de mais valia,
quanto tem de teso, e relho,
é semelhante ao coelho,
que somente em cova cria:
quer de noite quer de dia,
se tem pasto, sempre come,
o comer lhe acende a fome,
mas às vezes de cansado
de prazer inteiriçado
dentro em si se esconde, e some.

Está sempre soluçando
como triste solitário,
mas se avista seu contrário,
fica como o barco arfando:
quer fique duro, quer brando,
tem tal natureza, e casta,
que no instante, em que se agasta,
(qual galgo que a lebre vê)
dá com tanta força, que
os que tem presos arrasta.

Tem uma contínua fome,
e sempre para comer
está pronto, e é de crer
que em qualquer das horas come:
traz por geração seu nome,
que por fim hei de explicar,
e também posso afirmar,
que sendo tão esfaimado,
dá leite como um danado,
a quem o quer ordenhar.

É da condição de ouriço,
que quando lhe tocam, se arma,
ergue-se em tocando alarma,
como cavalo castiço:
é mais longo, que roliço,
de condição mui travessa,
direi, porque não me esqueça,
que é criado nas cavernas,
e que somente entre as pernas
gosta de ter a cabeça.

É bem feito pelas costas,
que parece uma banana,
com que as mulheres engana
trazendo-as bem descompostas:
nem boas, nem más respostas
lhe ouviram dizer jamais,
porém causa efeitos tais,
que quem experimenta, os sabe,
quando na língua não cabe
a conta dos seus sinais.

É pincel que cem mil vezes
mais que os outros pincéis val,
porque dura sempre a cal
com que caia nove meses:
este faz haver Meneses,
Almadas, e Vasconcelos,
Rochas, Farias, e Teles,
Coelhos, Britos, Pereiras,
Sousas, e Castros, e Meiras,
Lancastros, Coutinhos, Melos.

Este, senhora, a quem sigo,
de tão raras condições,
é caralho de colhões
das mulheres muito amigo:
se o tomais na mão, vos digo
que haveis de achá-lo sisudo;
mas sorumbático e mudo,
sem que vos diga o que quer,
vos haveis de oferecer
a seu serviço contudo.

De Caetano José da Silva Souto-Maior
Martinhada

Canto Primeiro
I. Eu canto a porra e o varão potente;
esse que fez dos rins no seminário
a toda a carne humana guerra ardente
no excesso do apetite fornicário:
o Martinho, ou carneiro de semente,
que sobre as putas tem membro arbitrário,
eclesiástico anfíbio de maldade,
que, juntamente, foi clérigo e frade.

II. Este é o varão; o membro é aquele
grão-senhor do comércio dos marzapos,
porque a fama gentílica atropele
da genital enxúndia dos Priapos:
o que ao vaso das moças tira a pele
e costuma fazer-lhe a crica em trapos,
quando vermelha e imodesta atura
da bimbalhada a horrenda embocadura. 

[...]


 

[1] Lacan, J. O Seminário, livro 5: As formações do inconsciente. (1957-1958) Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. p. 359.

[2] Lacan, J. “A significação do falo”. In: Escritos. (1958). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 697.

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