Freud incompleto

Resenha

Neurose, psicose, perversão. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes.

Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016. (Obras incompletas de S. Freud, v. 5).

 

Frederico Feu de Carvalho

 

Neurose, psicose, perversão é o quinto volume da cuidadosa edição das Obras incompletas de S. Freud, publicada pela Editora Autêntica, sob a coordenação de Gilson Iannini e Pedro Heliodoro Tavares. O presente volume reúne os escritos freudianos sobre as estruturas clínicas e seu diagnóstico diferencial. Em certo sentido, esses escritos são próximos dos textos metapsicológicos, mas estão dirigidos ao reconhecimento prático dessas estruturas em seus aspectos econômico, dinâmico e topográfico. Recobrem um período de aproximadamente 30 anos da elaboração freudiana, que vai do Manuscrito H, de 1895, até o artigo sobre o Fetichismo, de 1927.

A organização do volume tem a grande vantagem de recortar o tema e ao mesmo tempo expor o seu desenvolvimento cronológico, de forma que o leitor pode apreender a sequência da elaboração freudiana, os impasses e as soluções encontradas que culminam no arcabouço lógico das estruturas clínicas freudianas. Nele encontramos tanto o essencial das reformulações derivadas da teoria do narcisismo, que permitiram avançar as teses de Luto e melancolia (1917), quanto aquelas oriundas da segunda tópica, que redefiniram as fronteiras entre neurose e psicose, em 1924, a partir da noção de ‘perda de realidade’. Os artigos reunidos neste volume nos permitem ainda adentrar o terreno das fantasias neuróticas em sua fundamentação pulsional, em geral ligadas às perversões, bem como entender a estrita associação entre estrutura psíquica e linguagem, como podemos ver em Bate-se numa criança (1919) e A negação (1924), entre outros.

Nunca é demais ressaltar a importância de ler Freud hoje, cuja obra permanece atual, a despeito do tempo transcorrido, tendo sobrevivido a inúmeras tentativas de desqualificação, em geral em nome do cientificismo de nossa época. Tendo atravessado o turbulento século XX, é justo dizer dessa obra que ela se tornou um clássico. Por isso, não faz sentido algum dizer, hoje em dia, que o pensamento de Freud está ‘ultrapassado’. O pensamento freudiano está de tal forma entranhado em nossa cultura que já o incorporamos à nossa linguagem ordinária. Trata-se de uma produção que faz parte da formação do homem ocidental, tendo subvertido nossa maneira de pensar, assim como fizeram Copérnico, Darwin ou Marx, e que continua essencial para a compreensão dos fenômenos contemporâneos, sejam eles clínicos, sejam eles sociais.

A qualidade da edição dessas Obras incompletas de S. Freud salta aos olhos. Não só pela maneira nova de organizar e tratar o texto, alternando entre volumes temáticos e monográficos, mas especialmente pelas opções de tradução e pelo excelente acervo de notas e textos complementares. A tradução deste quinto volume, confiada a Maria Rita Salzano Moraes, consegue manter uma boa fluência, mesmo diante de passagens mais densas. Em vários momentos, quando se trata do uso de conceitos-chave, preservou-se entre colchetes o termo alemão, o que permite ao leitor discernir entre o uso coloquial e o uso conceitual desses termos.

Os artigos são seguidos das notas do editor, que nos dão seu contexto, seu histórico, seus detalhes e suas motivações, o que podemos tomar como um verdadeiro guia de leitura. Além disso, contamos com as esmeradas notas de revisão e tradução, que justificam escolhas, revelam nuances despercebidas e acrescentam informações quanto ao estilo e ao vocabulário freudianos.

O leitor encontrará ainda neste volume um excelente ensaio escrito por Antônio Teixeira, à guisa de posfácio. Nele se revela o quanto a noção de sujeito, categoria que Lacan soube explicitar a partir de seu ‘retorno a Freud’, é essencial para distinguir o procedimento freudiano do aparato da psicopatologia psiquiátrica de sua época. O sujeito está no fundamento mesmo da ‘escolha da neurose’, que perpassa a problemática desses artigos. Mesmo que não possamos atribuir a esse sujeito a categoria de consciência, falar de uma escolha, aí onde a psicopatologia psiquiátrica exclui a subjetividade, é um procedimento essencial para uma responsabilização frente aos sintomas e uma condição de todo tratamento possível, seja das neuroses, seja das psicoses.

O modo de proceder que encontramos em Freud, quando se trata de discernir as diferentes estruturas ou categorias clínicas, não é um mero repertório de sintomas e classes, mas uma conjectura oriunda da fala de cada sujeito tomado em sua singularidade, da qual se deduzem estratégias em relação ao desejo e às formas de organização pulsionais. Nesse sentido, como bem mostra Antônio Teixeira, a psicanálise demonstra que, em se tratando de categorias psíquicas, a singularidade do sujeito subverte a classe na qual se busca representá-lo. Será preciso, então, buscar, em cada tratamento, o nome próprio atribuído ao sintoma, em detrimento de sua nomeação diagnóstica.

Pode-se dizer que sob determinados aspectos a obra de Freud permanece intraduzível. Lacan sempre enfatizou que uma leitura rigorosa de Freud deveria manter a intraduzibilidade do real, desse real que ele associa a um “traumatismo”, e que podemos remeter à hiância aberta pelos atravessamentos e pelas ressonâncias da linguagem no corpo. A pretensão de traduzir e padronizar, o sonho, enfim, de um Freud definitivo e estandardizado, não faz jus à riqueza de suas intuições e ao inacabamento de uma matéria que não se deixa seduzir pelos parâmetros científicos de um real palpável e dominado pelo saber. Em outros termos, o contexto da descoberta freudiana, sua fecundidade, terá sempre primazia sobre a justificação conceitual dessa descoberta, e é bom que assim seja, pois as mutações da subjetividade exigem essa plasticidade para que possam ser acolhidas em cada época. Nada menos analítico que uma interpretação standard ou pré-fabricada. O que justifica algumas escolhas de tradução, como a de verter Trieb por pulsão, em detrimento de instinto, é o fato de que as práticas de gozo sofrem a influência decisiva dos contextos de época, que nada lembram as invariantes biológicas do instinto.

O estilo de Freud sempre demonstrou, nesse sentido, ser uma resposta à novidade de sua matéria. É quando o trabalho de investigação e o tratamento conceitual encontram o obstáculo intraduzível que Freud mais lança mão de seus recursos estilísticos e de suas referências à arte e à literatura. Trata-se de uma resposta ética diante da intraduzibilidade do real, desse real que excede o real científico. Por isso mesmo, é preciso continuar o trabalho de sua tradução interminável.

Um dos méritos da tradução das Obras incompletas de S. Freud me parece ser, justamente, o equilíbrio alcançado entre o rigor conceitual e a preservação de um estilo que porta as marcas de seu objeto. Para os leitores assíduos de Freud, para aqueles que suaram sobre as hoje amareladas e surradas folhas da edição das obras de Freud da Editora Imago, muitas vezes se debatendo com termos mal traduzidos para o português, obrigados a buscar alternativas em edições estrangeiras, é um prazer e um grande consolo abrir um livro verdinho em folha e encontrar o Freud renovado, amadurecido e fluente da caprichosa edição de suas Obras incompletas pela Editora Autêntica.

Frederico Zeymer Feu de Carvalho é psicanalista da EBP-AMP. É doutor em linguística pela FALE-UFMG e autor do livro: O fim da cadeia de razões: Wittgenstein, crítico de Freud. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FUMEC, 2002.

 

 

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