DO IMAGINÁRIO AO IMAGINÁRIO [1]

 

FRANÇOIS REGNAULT

1. Eis minha questão: a partir de quando Lacan diz “o imaginário”, substantivo, e não mais apenas “imaginário”, adjetivo?
2 Ela continua evidentemente nesta outra questão: por que o imaginário se torna substantivo?
3. Visto que Sartre escreveu, em 1940, O imaginário (depois de A imaginação, de 1936), Lacan deve alguma coisa a Sartre?

De i. a I.

Se examinarmos todos os textos que precedem o “Discurso de Roma”, de 1953, e o Seminário 1, de 1953-1954, não encontramos jamais, salvo engano, a expressão “o imaginário”.

Eu examinei de perto Os complexos familiares, de 1938, e percorri os artigos “O estágio do espelho” (1936, retomado em 1949); “Além do princípio da realidade” (1936); “O tempo lógico” (1945) – sabemos que Lacan não publicou nada entre 1939 e 1945 –; o texto sobre criminologia, de 1950; os “Propósitos sobre a causalidade psíquica” (1946, depois 1950) e “Intervenção sobre a transferência”, de 1951. Estou persuadido que encontramos aí a alternativa seguinte: “Imago” + adjetivo facultativo ou substantivos eventuais + “imaginário” (adjetivo), mas jamais “o imaginário”.

Exemplos em Os complexos familiares: “O complexo de desmame (...) representa a forma primordial da imago materna”[2] e “Vale dizer que a identificação, específica das condutas sociais, neste estádio, se funda sobre o sentimento do outro, que só pode ser mal conhecido sem uma concepção correta de seu valor inteiramente imaginário”[3].

Temos então, de um lado, o velho termo tomado de empréstimo a Jung – Imago (aparece em 1911 nas Metamorfoses e símbolos da libido): imagem, representação, inconsciente, esquema imaginário – e, de outro lado, o adjetivo “imaginário”, que tem um sentido crítico e indica que alguma coisa é desconhecida. Não se encontra, é claro, a expressão “imago imaginária”, porque “imaginária” é aí o adjetivo relativo a imago.

Isto não impede que encontremos “imagem”: “Não falaremos aqui, com Freud, de auto-erotismo, uma vez que o eu não está constituído, nem de narcisismo, uma vez que não há imagem do eu”[4].

Mais sistematicamente, eis alguns marcos em Os complexos familiares:

Desmame: A recusa do desmame funda “a imago da relação de nutrição que ele tende a restabelecer”[5]. Esta imago tem forma e conteúdo.

Intrusão: A propósito do ciúme fraterno, “depreende-se que a imago do outro está ligada à estrutura do corpo próprio, e mais especialmente de suas funções de relação, por uma certa similitude objetiva”[6].

Estágio do espelho: O valor de “imagem especular”, “ilusória como imagem” e sua estrutura “como ela reflete a forma humana”[7].

Complexo de Édipo: “É, com efeito, em virtude de uma identificação do sujeito com a imago do progenitor do mesmo sexo que o supereu e o ideal do eu podem revelar à experiência traços conformes às particularidades dessa imago”[8].

Na sequência do texto, “imaginário” será, ou adjetivo susceptível de caracterizar os traços ilusórios dessas estruturas: “formas imaginárias do corpo”[9] etc., ou se oporá a realidade: “função decrescente da realidade destes objetos em benefício de seu alcance imaginário”[10].

Citemos ainda “identificação imaginária”[11], “objetos imaginários”[12], “impasses imaginários”[13]. E ainda “animação imaginativa da realidade”[14]. No entanto, fora uma alusão a “la folle du logis”[15], não se trata nunca de imaginação.

Será assim até o “Discurso de Roma”. Fora isso, “imaginário” perderá por vezes seu sentido puramente adjetivo, seja por se aproximar e se opor ao simbólico, seja por designar um lugar.

Em 1946, em “Propósitos sobre a causalidade psíquica”, observa-se algumas expressões marcantes: “espaço imaginário do poeta”, “relações imaginárias fundamentais”, “captação identificadora pela imago”, “autonomia como lugar imaginário de referência das sensações proprioceptivas”.

Percebe-se aqui que o imaginário pode designar uma relação, uma estrutura, um nó, um espaço. Tudo está pronto para fazer dele um substantivo.

Em 1948, em “A agressividade em Psicanálise”, a função imaginária é ligada ao caráter simbólico próprio à agressão, e a práxis analítica tem seu lugar no “espaço imaginário onde se desenvolve esta dimensão dos sintomas”, que supõe “o espaço onde se desenvolve o conjunto de imagens do eu”[16].

Já em 1949, em “O estádio do espelho”: “Basta conhecer o estádio do espelho como uma identificação, a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele se assume uma imagem”, à qual damos “o antigo nome de imago”[17].

Assim, oposição ao simbólico: pelas imagos, vemos suas “faces veladas” se perfilarem “na penumbra da eficácia simbólica”[18].

Poderíamos dizer, sem no entanto exagerar, que a linguagem se fez menos descritiva de figuras que analítica de estruturas. “Imaginário” funciona ainda eminentemente com adjetivo: “zênite imaginário do homem moderno”[19], “servidão imaginária”[20].

Além disso, um diálogo se instala com Sartre, não sobre o imaginário, mas a propósito de O ser e o nada: os inventores do narcisismo primário “tocaram nessa negatividade existencial cuja realidade é tão vivamente promovida pela filosofia contemporânea do ser e do nada”[21]. Mas a crítica de Lacan incrimina em Sartre “uma self-suficiência da consciência” que (...) “encadeia nos desconhecimentos constitutivos do eu a ilusão de autonomia em que se fia”[22].

Poderíamos, então, chegar a escrever como resultado geral: imago da identificação[23], espaço imaginário[24], e tirar daí: o imaginário. Mas a fórmula, que eu saiba, só aparece em “Discurso de Roma”, em seu começo.

Introdução do “Discurso de Roma”

Os problemas da psicanálise, diz Lacan aí, se mostram claramente através de três eixos, dos quais eis o primeiro: “Função do imaginário, digamos, ou mais diretamente, das fantasias na técnica da experiência e na constituição do objeto nas diferentes etapas do desenvolvimento psíquico”[25]. “Digamos” não seria a marca, a assinatura de que a partir daí se recorrerá a esta fórmula?

Desde então, o substantivo dominará todas as outras referências – imago, imagem, imaginário adjetivo – e se oporá constantemente a este outro: o simbólico. Como testemunha o Seminário 1, perfeitamente contemporâneo, onde vão aparecer as expressões canônicas desde então: “relação imaginária, ordem simbólica”, tais como elas serão representadas no esquema Z [26], e no esquema L [27], que inscreve “relação imaginária” entre os pontos a e a’. Do mesmo modo, a “intersubjetividade imaginária” por oposição ao “registro simbólico”[28]. A partir daí, mostra-se a tese do primado do simbólico sobre o imaginário, e mesmo a tese final do imaginário vindo em terceiro depois do real e do simbólico (segundo a ordem: R.S.I.).

Sartre

Lacan cita Sartre a propósito de O imaginário? Não que eu saiba. O Sartre que interessa a Lacan neste momento é aquele de O ser e o nada, publicado em 1943, a propósito de algumas figuras perversas: escopofilia, sadomasoquismo, homossexualidade: “Visamos aqui o aspecto frequentemente muito pouco ‘realizado’ da apreensão do outro no exercício de algumas dessas perversões, seu valor subjetivo de fato bem diferente das reconstruções existenciais, aliás muito surpreendentes, que um Jean-Paul Sartre pôde dar delas”[29]. Tudo se passa como se pudéssemos nos inspirar na intersubjetividade sartreana, mas que pudéssemos nos sentir dispensados de sua fenomenologia do imaginário.

Mas o que é o imaginário sartreano? Em duas palavras:

  • De início, a imagem é a imagem mental da “consciência imageante”. É uma “consciência suis generis”, uma forma sintética pela qual eu posso descrever o objeto da imagem, não a imagem enquanto tal.
  • “A imaginação não é um poder empírico a mais da consciência, é a consciência inteira enquanto ela realiza sua liberdade; toda situação concreta e real da consciência no mundo é cheia de imaginário na medida em que ela se apresenta sempre como um ultrapassamento do real”[30]. É porque o homem é livre que ele imagina.
  • “O imaginário é em cada caso ‘alguma coisa’ concreta em direção à qual a existência é ultrapassada”. Ou ainda: “o imaginário representa a cada instante o sentido explícito do real”.
  • Enfim, com um I maiúsculo: a obra de arte depende do Imaginário, que cria um analogon, um irreal [31].

Esquematicamente:

 

SARTRE

 

Imaginário acessível

Imagem = consciência: imagem de Pedro, da mesa

Ultrapassamento do real

Espontaneidade, liberdade

 

LACAN

 

Imagem “inacessível”[32]

Imagem = representação inconsciente: imagem do pai, da mãe, do corpo

Oposição ao real

Alienação

Avançarei então a hipótese de que Lacan não utilizou o imaginário-substantivo entre 1940 (Sartre) e 1953 (“Discurso de Roma”) para não dar lugar à confusão com o imaginário “psicofilosófico”. Mas ele não arrisca mais nada ao fazê-lo em 1953, porque nesse intervalo O ser e o nada lhe ofereceu as descrições intersubjetivas que ele pôde retomar, em todos os sentidos da palavra. Donde, certamente, no “Discurso de Roma”, a expressão “o imaginário digamos”...

Em seguida ou: do imaginário a R.S.I.

Conhecemos o que vem depois. Ao menos quatro propriedades afetarão o imaginário:

– ele estará de início em oposição ao simbólico;

– ele suportará sempre a supremacia do simbólico (o que não é o caso em Sartre, que dá pouco lugar ao símbolo);

- ele estará em seguida acompanhado do simbólico e do real;

- ele será ligado ao corpo, será o alfabeto do corpo[33].

E ainda, no esquema R, cujo ponto de vista é, em parte algébrico, ele será um espaço (triangular, mas passível de uma torção topológica).

E ele não terá no fim mais que um sentido topológico: “Eu vos falarei de três formas do Nome-do-Pai, aquelas que nomeiam o imaginário, o simbólico, e o real, pois é nestes nomes que se sustenta o nó borromeano”[34].

No fim, o imaginário é igual ao simbólico e ao real, desse ponto de vista topológico. É a estrutura que determina o inconsciente.

O nó borromeano, enquanto o que suporta o número três, é do registro do imaginário. Mas o imaginário, diferentemente do que se passa no espaço filosófico onde sua tendência é de inchar (erro, ilusão, ideologia, etc.), será reduzido.

“O imaginário se reduz àquilo que não é um máximo, imposto pelo saco do corpo, mas ao contrário um mínimo”[35].

A consistência é imaginária, e o imaginário não é mais que a consistência do nó.

 

Tradução: Lúcia Grossi dos Santos

Revisão: Gilson Iannini


 

Referências:

 

[1] Publicado em Lettre Mensuelle, Ecole de la Cause Freudienne, n. 133, 1994.

[2] LACAN, J. Os complexos familiares. Trad. Marco Antônio Coutinho e Potiguara Mendes da Silveira Junior. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997. p. 22.

[3] Ibid., p. 32.

[4] Ibid., p. 26.

[5] Ibid., p. 24.

[6] Ibid., p. 33.

[7] Ibid., p. 36.

[8] Ibid., p. 52.

[9] Ibid., p. 50.

[10] Ibid., p .69.

[11] Ibid., p. 79.

[12] Ibid., p. 85.

[13] Idem.

[14] Ibid., p. 88.

[15] NT: Optamos por não traduzir a expressão “folle du logis”, que significa imaginação, pois se trata justamente do termo que, segundo o autor, Lacan não usava nesse momento.

[16] NT: Adotamos aqui a solução de Vera Ribeiro na edição brasileira dos Escritos, traduzindo “l’espace où se développe l’imagerie du moi” por “espaço onde se desenvolve o conjunto de imagens do eu”.

[17] LACAN, J. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 98.

[18] Ibid., p. 98.

[19] Ibid., p. 99.

[20] Ibid., p. 100.

[21] Ibid., p. 102.

[22] Idem.

[23] Ibid., p. 118.

[24] Ibid., p. 112.

[25] Ibid., p. 243.

[26] Ibid., p. 555.

[27] Ibid., p. 58.

[28] LACAN, J. O seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Trad. Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1983. p. 250.

[29] LACAN, J. Escritos, op. cit., p. 122.

[30] SARTRE, J.-P. L’imaginaire. Paris: Galimard, 1940. p. 37-358. (Folio).

[31] Ibid, p. 362.

[32] LACAN, J. O seminário, livro 1, op. cit.

[33] LACAN, J. Ornicar?, Paris, Seuil, n. 2, p. 91.

[34] LACAN, J. Ornicar? , Paris, Seuil, n. 2, p. 35.

[35] LACAN, J. Ornicar? , Paris, Seuil, n. 2, p. 94.

 

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