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logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-2637


O assombro da literatura enfrentado em A mais recôndita memória dos homens

                                                                                                         

Ludmilla Feres Faria
Psicanalista, Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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 Aos 31 anos, Mohamed Mbougar Sarr é o primeiro escritor da África Subsaariana a receber a mais importante distinção literária para títulos em língua francesa, o prêmio Goncourt, por seu livro A mais recôndita memória dos homens.

Nascido em 1990, filho de um médico de Diourbel, no centro do Senegal, Mohamed Mbougar Sarr revelou-se, desde muito novo, um excelente aluno e leitor ávido. Segundo afirma, na ocasião de continuar seus estudos cogitou, entre outras carreiras, ser médico, jogador de futebol, soldado e professor, até que a escrita se tornou necessária. Tendo passado pela Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais, período no qual se dedicou a investigar Léopold Sedar Senghor, a grande voz da literatura africana e defensor da “negritude”, acaba por abandonar sua tese para mergulhar na escrita de ficção. Confidenciou à TV 5 Monde, por ocasião de sua premiação: “A ficção ganhou! A literatura é um ponto de vista sobre o mundo. Não há diferença entre vida e literatura”.

A mais recôndita memória dos homens, seu quarto livro, é inspirado no destino amaldiçoado do escritor maliano Yambo Ouologuem, primeiro negro a ganhar o prêmio francês Renaudot, em 1968, com 28 anos, pelo romance Le devoir de violence, ainda sem tradução para o português. Seis anos depois, no auge da fama, Ouologuem é acusado de plágio e, apesar de seus argumentos de defesa, acaba abandonado pelo seu editor francês, que retira seus livros de circulação. Refugia-se, então, em seu país natal, onde viveu como eremita até morrer no esquecimento, em 2017.

Quando questionado sobre essa sua escolha, Sarr afirma o fascínio que esse escritor, atacado tanto pelos africanos quanto pelos franceses, despertou nele: “Por que ele se calou, quando ainda tinha tanto a dizer?”. Acrescenta que “topar com alguém tão silencioso sempre põe em questão o sentido – a necessidade – de nossa própria palavra, a qual subitamente questionamos se não é uma tagarelice maçante, uma borra da linguagem”. Nos termos da psicanálise, também constatamos que a fala é modo de gozo, um gozo do blábláblá, e que o trabalho de uma análise visa enxugar essa proliferação, reduzindo assim o sentido para localizar em cada caso o “isso” em torno do qual as palavras gravitam: o real.

O próprio Sarr retoma numa de suas entrevistas a afirmação de que “o ato de escrever não é uma operação de transcrição da realidade tal como pode ser apresentada ao cidadão comum; trata-se mais de sublimá-lo, para torná-lo um material literário único, intransponível e idiossincrático”. É por isso que, para ele, a escolha do tema é menos importante do que a forma como ele é abordado. Ao levar esse raciocínio ao extremo, ele aconselha: “Nunca mais caia na armadilha de querer dizer do que fala um livro que você acha grande... a verdade é que só um livro medíocre, ruim ou banal, fala de alguma coisa”. Para ele, a única pergunta que importa é: “o que é escrever?”.

Se a questão que permeia A mais recôndita memória dos homens é a de que a literatura se apresenta como um ideal a ser alcançado a partir do estilo de cada um, Sarr o faz no tensionamento entre o confinamento da palavra e o comunicável, entre a política e a estética e, também, questionando a noção de compromisso sorrateiramente ligada ao escritor africano como um nó do qual ele acha difícil se livrar.

No livro, ele investiga a história íntima de dois personagens, escritores africanos: Diégane Latyr Faye, contemporâneo, em busca de si mesmo e que se assemelha a ele próprio, o autor; e o misterioso T.C. Elimane, que teve a sua hora de glória em 1938, após lançar seu livro O labirinto do inumano, para logo em seguida ser acusado de plágio e cair num rápido declínio. A história se passa no Senegal e em Buenos Aires, mas também em Amsterdã e Paris, lugares em que Diégane anda à procura de T.C. Elimane e dos motivos pelos quais ele desapareceu.

O grande mérito de Sarr é fazer dessa busca uma obra sublime, labiríntica, permeada de camadas, nas quais o narrador cruza não apenas com personagens fictícios, como os jovens escritores africanos, mas também invoca figuras literárias, como Ernesto Sabato e Jorge Luís Borges, para investigar a própria literatura, embora afirme através do narrador que “buscar literatura é sempre perseguir uma ilusão”.

É a partir desse tensionamento entre o novo e o que se herda, vivido por Diégane Faye, que Sarr pode perguntar sobre a originalidade do criador contemporâneo, sempre levado a questionar os seus antecessores, mas também sempre consentindo em fazê-los existir em seu trabalho, conscientemente ou não. Para ele, a literatura é sempre, de alguma forma, vestígio, memória, citação, espelho. Daí sua afirmação de que, para ser um grande escritor, é preciso ter o “gênio da colagem”.

Seu livro é também um testemunho da forma através da qual ele consegue se posicionar frente aos efeitos, na escrita e na literatura, da complexa relação entre a África e a Europa: “é uma relação assimétrica na medida em que há a ideia de que aqueles que são dominados não merecem ser lidos ou conhecidos”. Na entrevista intitulada “A paixão do possível”, publicada na revista Quatro Cinco Um, ele utiliza-se do exemplo da língua francesa para discorrer sobre a forma como “se virou” com essa herança trágica da colonização. Adverte-nos que esse “espinho na carne do colonizado” não pode ser suprimido, mas tampouco precisa continuar a exercer a mesma violência: “A língua francesa poderá se tornar uma entre as outras [...] é preciso aprender a viver com ela”.

Tal afirmação nos leva à ideia de trauma, tão cara à psicanálise desde seus primórdios – o trauma como o que deixa traço e consequentemente impõe uma marca na história subjetiva de cada falasser. É o impacto dessa marca indelével, do encontro da palavra com os corpos, que torna impossível unificar os sujeitos numa mesma classe: “todos colonizados”. Precisamente é isso que busca, por exemplo, o cristianismo, como nos adverte Miller em Extimidad. O mandamento “amar ao próximo” é uma maneira de anular esse traço singular, esse gozo inassimilável, e fundar o comum, a conformidade. Encontra-se aí a origem do racismo, esse ódio que se dirige precisamente para o mais singular de cada um, esse gozo que funda a alteridade. Segundo Miller (2010, p. 201), “a verdadeira intolerância é a intolerância ao gozo do Outro”.

O caminho que esse genial escritor escolhe não é esse, do racismo; ele não será nem o salvador entre seus compatriotas, nem o exemplar colonizado no mundo dos brancos. Para lidar com os restos inassimiláveis disso que nele ecoa, escolhe uma terceira via: entregar-se por inteiro à literatura. Como afirma um de seus personagens: “escreverei como alguém que trai seu país, isto é, como alguém que escolhe como território não o país natal, mas o país fatal, a pátria para a qual nossa vida profunda nos destina desde sempre, a pátria interior, aquela das recordações calorosas e das trevas geladas, a pátria dos primeiros sonhos, a pátria dos medos e das vergonhas que destila pelos flancos da alma [...] única pátria que eu consideraria habitável. [...] que pátria é essa? Você a conhece: é a pátria dos livros, é óbvio [...] serei cidadã desse reino, o reino da biblioteca”.

A mais recôndita memória dos homens conta também a história das famílias, dos gêmeos e do amor dos dois pela mesma mulher, da loucura, da cegueira, das convulsões sociais. Desfilam em suas páginas jovens sensualmente livres em busca do amor, mas também das guerras; aqueles que nunca saíram do lugar e aqueles que estão sempre prontos para partir. Nesse percurso, o autor é levado a questionar até que ponto pode-se comparar a escrita ao sofrimento social. E ele próprio admite que esse é o equilíbrio, que permeia todo romance; essa fé de que a literatura pode tudo, mas ao mesmo tempo não pode muita coisa; ou, em suas palavras: “a literatura não existe para dar respostas”.

Ele alerta àqueles que buscam na escrita uma facilidade: “escrever exige sempre outra coisa, outra coisa”. É preciso torcer as palavras, torná-las um instrumento a serviço da literatura, ou ela permanecerá no domínio do incomunicável e do indizível. Para o protagonista desse romance, a literatura surgiu sob os traços de uma mulher de beleza arrebatadora, que o colocou de joelhos, suplicando-lhe: “passe uma noite comigo, uma única e miserável noite. Ela desapareceu sem uma palavra. Lancei-me em seu enlaço [...] vou te pegar, vou te sentar em meus joelhos, vou te obrigar a me olhar nos olhos, vou ser um escritor!”.

Desde as primeiras páginas de A mais recôndita memória dos homens, Sarr evidencia como a escrita se impôs para ele como uma necessidade inevitável: “Um labirinto no qual obra e escritor caminham juntos, numa rota longa e circular, cujo destino se confunde com a origem: a solidão”. Podemos traduzir o que ele nomeia de solidão para o Um sozinho: escrever torna-se, para Sarr, a resposta a esse traço rebelde à significação, que itera, mais e mais. E, frente ao qual, ele afirma que toda pessoa assombrada pela literatura hesita: “escrever, não escrever”. A mais recôndita memória dos homens também pode ser lido como um modo de Sarr responder a esse assombro.

Referência

Eichenberg, F. A Paixão do Possível. Quatro Cinco Um, nov. 2023. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/literatura-negra/a-paixao-do-possivel#:~: text=A%20paix%C3%A3o%20do%20poss%C3%ADvel%20%C3%A9,como%20um%20sentido%20do%20poss%C3%ADvel.  Acesso em: 26 fev. 2024.

MILLER, J.-A. Extimidad: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2010.

Sarr, M. M. A mais recôndita memória dos homens. São Paulo: Fósforo, 2023.

 

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