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 logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 19 - Agosto de 2023. ISSN:2526-2637

 

Orientar-se pelas expressões ordinárias
de 
desordem do sentimento de vida 

Ana Lydia Santiago
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise / EBP
e da Associação Mundial de Psicanálise / AMP
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“Uma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito” é a expressão usada por Lacan (1957-58/1998, p. 565) em seu texto “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” para se referir ao que Schreber pôde apresentar como resultado de seu processo de adoecimento. Estamos diante da análise de um caso de psicose extraordinária, exemplar de que, no ponto em que é chamado o significante do Nome-do-Pai, pode responder no Outro um furo, o qual, pela carência do efeito metafórico [P0], provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica [Φ0] (LACAN, 1957-58/1998, p. 564). Porém, levando em conta a sucessão das duas doenças de Schreber que se manifestam com um intervalo de nove anos de diferença, assim como o esquema do desencadeamento que se deduz desse texto de Lacan, o que se observa, curiosamente, é que apenas durante a segunda doença a foraclusão do significante do Nome-do-pai se institui como “estalo” de origem divina. O Φ0 já está formado no momento da primeira doença e aprofunda-se ainda mais na segunda.

Esse encadeamento temporal da psicose coloca a ausência do falo simbólico [Φ0], ou a ruptura do laço imaginário, a ruptura do par a–a’, como aquilo que provoca o desencadeamento. De fato, alguns sujeitos testemunham disso que acontece antes do desencadeamento, se reservamos esse tempo para a formação do P0. Lacan (1957-58/1998, p. 564) se refere a um “dano” que Schreber só tem condições de desvendar parcialmente, pois está marcado pela censura, e em relação ao qual, em seu caso, o “assassinato das almas” desempenha um papel essencial.

Com efeito, no texto em que Schreber trabalha a cura de sua psicose, é perceptível uma lacuna, precisamente no momento em que ele tenta falar do gozo imaginário e excessivo em seu corpo. Freud tentou preencher essa lacuna fazendo alusão ao Fausto de Goethe, à opera de Weber e ao poema dramático de Byron (LACAN, 1957-58/1998, p. 565). Lacan, por sua vez, destaca o furo como difícil de ser reparado, que precipita teorias delirantes, matéria-prima para a construção de uma metáfora delirante, sendo esta feita de simbólico e capaz de ordenar novamente o seu mundo. Se trata aí, nesse dano correspondente ao furo na significação fálica, de uma “desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito” (LACAN, 1957-58/1998, p. 565).

Toda ordenação do mundo, tomada como uma ordenação de sentido, é delirante, afirma Lacan em seu último ensino. O que diferenciaria o delírio de cada um é a maior ou menor vulnerabilidade para tal ordenação simbólica se desarranjar. Nessa perspectiva, o trabalho clínico consiste não em compreender o que o paciente diz – o que equivaleria a deixar-se capturar por seu delírio –, mas em captar o modo particular, e mesmo extraordinário, de o paciente dar sentido às coisas, àquilo que acontece e se repete em sua vida, para favorecer a autorreparação do furo da foraclusão (MILLER, 2010).

Estar atento às expressões ordinárias da “junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito” é uma maneira de valer-se do instrumento clínico da “psicose ordinária” para a investigação e verificação de casos de psicose em que há um sintoma que convém, no sentido de um arranjo ou funcionamento mais ou menos eficaz, permitindo ao sujeito se sair bem e sobreviver (MILLER, 2010). Esse sintoma pode sofrer um abalo de uma hora para outra, que muitas vezes é descrito como uma experiência de corpo singular.

Trata-se de casos em que se pode localizar fenômenos discretos de franja, como são os pequenos problemas de linguagem, o caráter intrusivo das palavras, vagas ideias megalomaníacas, certas vivências de vazio, de não ser nada, o sentimento de…, reações de angústia e outros índices disruptivos do gozo, que podem ser tomados como índices diagnósticos, na perspectiva de não haver um desencadeamento ou de a ordenação do mundo não ruir. Diante de uma desordem na “junção mais íntima do sentimento de vida”, a direção do tratamento consistiria em conectar todos os pequenos detalhes que aparecem distantes uns dos outros em uma desordem central.

Eu estava em casa brincando com meu irmão, no quarto. Minha mãe chamou para o lanche. Ele foi e eu fiquei escondido. Saí do esconderijo e ele não estava mais lá. Eu estava sozinho. Só eu, mais ninguém. Aí escutei um barulho, que veio de dentro: crack! Senti que era minha coluna vertebral que se quebrou. Falei com minha mãe, mas ela não deu importância. Depois falei com meu pai, ele não entendeu. Desde esse dia, eu não consigo mais andar direito. Mamãe diz que é bobagem minha, que estou andando direito. Eu não sou mais o mesmo; não falo mais do mesmo jeito. Acho que vou morrer. Pedi pra minha mãe me trazer aqui porque meu irmão vem aqui. Você pode me ajudar a consertar? Mas eu preciso do meu irmão aqui comigo.

O “crack!” da coluna vertebral que se quebra torna sonora a estranheza entre o eu e o corpo, quando o irmão, na função de duplo, se ausenta. É um elemento discreto, um pequeno detalhe, desacreditado por aqueles que estão ao seu redor, mas que assinala uma desordem provocada na “junção mais íntima do sentimento de vida”. Ele indica a fratura sofrida na referência imaginária constituída, implicando o irmão, uma ruptura no eixo imaginário a–a', que em certa medida é equivalente ao eu. Sinaliza precisamente que isso que afetou o sujeito teve consequências sobre a libido esmagada por um profundo desinvestimento do mundo: “Eu não sou mais o mesmo; não falo mais do mesmo jeito. Acho que vou morrer”.

Esse paciente solicita o psicanalista como “instrumento”[1] para sua invenção. Se o analista é instrumento, a psicanálise é o motor da invenção que se faz sob transferência, quando surge um impasse, ou seja, algo que sobrevém a um sujeito quando se esgotam para ele os recursos até então utilizados para lidar com seu corpo no mundo. Nessa circunstância, a invenção que inclui o analista pode se apresentar como uma possibilidade. No caso mencionado, as sessões aconteceram completamente fora do convencional, com a presença de duas crianças na sala ao mesmo tempo. Quando o menino pôde voltar a estar sozinho, sem a presença do irmão, ele iniciou a construção de uma antena, invenção sintomática proveniente da análise, que lhe permitiu reparar em certa medida o nível de comunicação fraturado e não o deixou mais às voltas com o enigmático do corpo com tanta frequência. Porém, a eficácia dessa invenção só se verificará se ela conseguir aparelhar o gozo para esse sujeito.

A foraclusão do significante do Nome-do-Pai [P0] e a ausência da significação fálica [Φ0] designam, como Lacan indica, “abismos” que podem ser cavados no simbólico e no imaginário respectivamente. São abismos localizáveis clinicamente pela emergência de fenômenos precisos. Deve-se considerar a distinção entre elas, pois há uma diferença de nível entre esses dois efeitos foraclusivos. Quando a foraclusão concerne ao significante do Nome-do-Pai, os efeitos atingem o terreno da cadeia simbólica do inconsciente, acarretando fenômenos de código e de mensagem que se manifestam como desordens, principalmente no campo da fala e da linguagem.[2]O caráter central da alucinação verbal e do delírio é a estrutura que se ordena em torno de significantes.

A foraclusão que incide sobre a significação fálica, por sua vez, compromete fundamentalmente a referência simbólica que fornece ao sujeito um liame íntimo com a vida. Esse liame resulta da operação necessária a todo ser falante de separação de uma parte da vida que se perdeu, perda inaugural da entrada do sujeito na linguagem, simbolizada pelo significante fálico. É essa simbolização efetuada por intermédio do significante fálico que torna o sujeito portador do sentimento e do desejo de existir. O falo é, portanto, o símbolo que representa a falta dessa parte perdida, que destina o sujeito ao desejo e, nesse sentido, é o símbolo do fluxo vital, o símbolo do órgão que dá vida e ao qual o sujeito permanece estruturalmente ligado.

A partir da referência clínica da psicose ordinária, as manifestações de ruptura nesse fluxo vital, índices de fratura no laço com a vida ou sinalizações de certa mortificação, podem ser tomadas como externalidades corporais, segundo a proposta de J.-A. Miller (2010). A desordem mais íntima no sentimento de vida é sinalizada, então, por um sentimento de que alguma coisa claudica, por uma experiência de que algo no corpo se desfaz. Há uma discordância que se inscreve prioritariamente no registro da relação identificatória narcísica ao próprio corpo, mostrando que nenhuma identificação simbólica serve de grampo ao corpo. O sujeito é levado, então, a inventar laços artificiais para apropriar-se de seu corpo e artimanhas para colmatar o abismo que se abriu.

Na particularidade do sentimento de desordem pode-se tentar apreender as variedades clínicas concernentes à regressão tópica ao estágio do espelho e à elisão do falo. A questão clínica que podemos colocar a partir dos sinais discretos que apontam para a necessidade de um grampo para o sujeito se sustentar com seu corpo é se, nesses casos de psicose ordinária, estamos diante de um novo imaginário ou de um novo falo.


Referências 

LACAN, J. O Seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1955-56).LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. (Trabalho original publicado em 1957-58).

LACAN, J. Televisão. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Trabalho original publicado em 1973).

MILLER, J-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana Online nova série, v. 1, n. 3, 2010. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/efeito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2022. 

 

[1] Em “Televisão” (LACAN, 1973/2003), Miller pergunta a Lacan sobre a posição específica do analista na clínica e ele lhe responde com um gesto, que é interpretado como o de um instrumento: o analista é instrumento para a invenção psicótica.

[2] Os fenômenos, que vão do eco do pensamento à língua fundamental, passando pelas diversas formas de automatismo mental, encontram-se descritos principalmente nas aulas do Seminário 3 (LACAN, 1955-56/1985) que foram intituladas “As imediações do buraco”, sobretudo no capítulo XXV, “O falo e o meteoro”.

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