Marcelo Dolabela

 

A única coisa que fazemos

com convicção é chorar.

Roberto Bolaño. Noturno do Chile.

 

 

  1. hemorragia-dia

 

toda manhã, quando saio de casa,

aprisiono a esperança na latrina;

e levo, na boca, apenas a brasa

da palavra não – lâmina mais fina,

 

pra enfrentar a razão, que a tudo arrasa,

pobreza de fé que não ilumina.

pra negar o relógio que atrasa

o início dos tempos quando termina.

 

sem pai, sem mãe, se vai, vã fantasia

de quem segue só por rumo incerto,

entre a pulsão de morte e a mais-valia.

 

atravesso florestas e desertos,

na lida da vida que lima o dia,

sendo acrobata de erros e de acertos.

 

 

  1. angústia agônica agora

 

por vesgas nesgas, se vê tristes melodias,

a memória é um músculo que nunca descansa,

traça trama no torpe pus das alegrias.

as dores são pesadas – em tantas balanças.

 

notívago, vago por minhas nostalgias,

o nervo exposto, algas amargam as lembranças,

desgosto feito pela urgência dos dias,

pela necessidade de ter esperança.

 

surdos vivos noturnos têm frágeis fragrâncias,

a tristeza grita gris na melancolia,

e a febre é fria, fibra na urna das ânsias.

 

lento lamento escrito na luz das urgências

sorve a seiva, a selva do caos da consciência,

na cova do tempo: pó, lama e poesia.

 

 

  1. instante-elefante

 

morre, comigo, um quase-nada, um quase-

mar de todas as possibilidades;

letras, sons; sílabas, palavras, frases;

singular, plural; inteiro, metade.

 

comer. digerir. defecar: no só

semblante sem sombra do que não sou;

torpor do existir no osso, no nó,

no nós, no vômito, na voz, no sol.

 

flagelo sem elo de leve morte,

martírio em série, delírio de ser,

serpente, réptil asqueroso, parte

 

de falso catre, desastre de viver,

vírus vil, vírgula que não fez arte,

em lastro que ninguém quer escrever.

 

 

  1. hematomas completos

 

não levem meu corpo ao meu velório.

meu corpo não pertence a ninguém.

qual e[c]lipse? qual crase? qual erário?

fui precário. vivi. não quero amém.

 

lutei. tive causa. não fui refém.

não fui, como tantos, mero notório,

que perderam a vida por vintém,

por um verbete de dicionário.

 

morri. fui. continuei o ordinário.

não trago medalha para o além.

sei que o pra sempre não é provisório.

 

não diga: mas, entretanto, porém;

que a vida não tem hora nem horário

nem despedir. adeus. morrer, também



Apresentação do poeta, professor e multi-artista por ele mesmo

Marcelo Dolabela nasceu em Lajinha (MG), em 1957. Professor, poeta, compositor e pesquisador (música e poesia). Mestre em comunicação pela Universidade São Marcos. Principais livros: Coração malasarte, 1980. Radicais, 1985. ABZ do rock brasileiro, 1987. Breve história da música de Belo Horizonte, 1993. Hai kaixa, 1993. Poeminhas & outros poemas, 1998. Lorem ipsus – Antologia poética & outros poemas, 2006. Acre Ácido Azedo, 2016. Fez roteiro para os filmes: Arnaldo Baptista – Maldito Popular Brasileiro e Plano sequência, ambos de Patrícia Moran; Uakti – Oficina instrumental e A hora vagabunda, ambos de Rafael Conde. Como diretor, lançou o filme Sábado da carne. Lidera o grupo musical Divergência Socialista. Produziu e apresentou os programas: Rock molotov, na Rádio Liberdade FM. Vitrola do Dolabela e Letra elétrika, ambos na Rádio Lagoinha FM. Lançou, em 2013, o CD Substância: Divergência Socialista – Marcelo Dolabela & parceiros. Realizou, em 2012, a exposição A história do rock brasileiro em 1000 discos. E, em 2014, as exposições: 50 discos que você precisa ouvir para entender o Golpe Militar (1964-1985) e Rock no circuito. Com artista postal, tem trabalhos expostos nos seguintes países: Japão, Austrália, Portugal, França, Holanda, Estados Unidos, Canadá, etc. E nos estados: Rio Grande do Norte, Paraíba, Ceará, Pernambuco, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Assinou coluna semanal no jornal Hoje Em Dia, de nov. de 1999 a fev. 2007. E no jornal Letras (do Café com Letras). Coordenou: Festival de Poesia de Belo Horizonte, 1994. Coleção Temporada de Poesia, 1994-1996. Projeto Poesia em Sintonia, segundo semestre de 1996. Recitais Poesia Orbital, Convento e Cinema Nazaré, 1996-1997. Coleção Poesia Orbital, 1997. (com 63 livretos). Bienal Internacional de Poesia de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Secretaria Municipal de Cultural de Belo Horizonte, dez. 1998. Recitais do Inferno, Café com Letras, 2000. Festival de Inverno de Ouro Preto – UNI-BH – literatura, 2000. Festival Internacional de Poesia Sonora de Belo Horizonte, ago. 2000. Festival de Poesia / 2o Salão do Livro, ago. 2001.

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