Marcus André Vieira [com a participação de Ram Mandil e Romildo do Rêgo Barros] 

O Latinha velha

Latinha velha[1] é um quadro de um programa apresentado por Luciano Huck, que reproduz com crianças uma intervenção que parece fazer sucesso com adultos. Nesse caso trata-se de carros, mas o princípio é aplicável a muitas situações. Toma-se uma situação de vida degradada e, sem que seu principal protagonista saiba, há uma recauchutagem radical, uma reconstrução do objeto ou da cena em questão. Até onde eu saiba, isso se realiza com o próprio corpo de uma feiosa, em extreme makeover, com a casa humilde de um sujeito humilde ou com o carro em Lata velha. Um amigo escreve em segredo ao programa dizendo que o fulano adora seu carro, mas que é uma lata velha. Em vez de dar um carro novo, a produção o reforma todo, e o coitado do dono se verá surpreendido ao encontrar seu novo-velho automóvel. A emoção e as lágrimas dessa reação serão explorados à exaustão.

Cuidado. É superficial a leitura que poderia ser resumida como “Na sociedade narcisista de hoje só se é feliz caso se consuma o que a propaganda vende”. É verdade, porém só isso não dá a dinâmica da coisa.

Como vocês percebem, o conceito de “maquiagem extrema” é o de uma transformação, e não substituição ou eliminação. Trata-se de converter um objeto fora do circuito, um traste velho, em algo passível de admiração e de inveja, que é a base do “feliz proprietário”, forma padrão para a felicidade comum de hoje. Estamos no plano da reciclagem dos objetos-resto, na reintrodução na cadeia do consumo do objeto a. Essa transformação do objeto se acompanha de uma conversão do sujeito, agora um sujeito do consumo de pleno direito.

Todo o interesse desse episódio é que ele demonstra o quanto essa conversão de um sujeito aferrado a seu objeto-resto em feliz proprietário pode ser dolorosa. Nesse caso, em vez de chorar de felicidade depois da desejada transformação, o menino chora de angústia.

O apresentador, que não é bobo, resolve o impasse porque tinha guardado a carcaça do velho carrinho. Ao ver um pouquinho de seu velho objeto, o garoto melhora um pouquinho de seu abatimento, o que já permite que todos possam acreditar que sua dor é felicidade. Pode-se agora ignorar a fala abafada em que o menino diz: “estou doente” ou, ainda, tomar essa fala como signo da emoção, e não do sofrimento. Na hora em que o menino vai falar eles suspiram como se fosse emocionante o que disse. Tal como o coro no teatro grego o público guia nossa emoção para o que dela se espera. A conversão se faz, portanto, com um tanto de violência.

Há algo naquele carrinho, como objeto transicional, que constitui o menino. Nosso corpo é feito de uma montagem de imagens, na qual objetos também entram. No mundo radical em que vivemos isso é muito mais sério. Carrinhos sempre fizeram parte do corpo dos meninos. Uma coisa, porém, é ter um grande carro e por isso estar mais próximo de um ideal nunca alcançável (o Pai no infinito); outra, com eclipse do ponto no infinito, é só poder ser tendo um carro. Essa inversão foi muito explorada por Alan Ehrenberg: quando não há mais infinito potencial, quando é possível alcançar o ideal, somos obrigados a sê-lo e deprimidos quando não conseguimos.

Vamos, com efeito, inverter. Não é porque as pessoas só querem consumir que o mundo está desorientado. O mundo está desorientado e, por isso, as pessoas só querem consumir. Nesse universo sem pai, os objetos são fundamentais. A montagem dos objetos passa a ser fundamental. Mas no imenso mar de objetos descartáveis alguns são diferentes, e eles é que nos interessam. São eles que sustentam a essencialidade da pessoa. Por isso falamos do Latinha velha, pois ele apresenta uma norma de montagem corporal a partir de um objeto-resto.

O problema é que os objetos a resistem a entrar na rede social das trocas, que hoje responde pelo nome “mercado”. Compreende-se que a sociedade crie procedimentos como o desses programas de televisão para, apoiando-se naquilo que o sujeito tem de mais seu, realizar uma maquiagem extremada nele, para que ele possa ser mais universal e entre no mercado.

Em vez de dizer que as pessoas que se submetem a esse tipo de programa são os pós-modernos, vamos pensar que elas estão entrando nessa máquina. Pegou-se um objeto ilimitado, que era o objeto do menino, para que se fizesse uma transformação. É exatamente isso que o capitalismo faz ao transformar o hambúrguer em o isso do McDonald’s. O que funciona é justamente o fato de se pegar um objeto ilimitado tipo resto e transformá-lo em objeto tipo consumo. Os dois são objetos a, mas passa-se de uma solução atípica a uma solução típica. Foi essa transmutação que com o menino do Latinha velha quase não funcionou.

Insisto. Quero lembrar que essa transformação não é apenas uma violência realizada pela imposição coletiva de um Ideal. Nesse caso tenderíamos a uma guerra santa contra todo esse tipo de produção realizada nesses programas. Não é o programa em si. Há algo em nossa sociedade que transforma esse objeto ilimitado mais-de-gozar natural ou resto num mais-de-gozar industrial. É, porém, mais-de-gozar de qualquer jeito e no nosso mundo é isso que é ser gente. No primeiro momento do menino a solução dele era muito menos coletivizável; ele não fazia parte do mundo como posteriormente em que ele passa a ser um cidadão do mundo. A primeira é uma solução precária, e a segunda, mais rígida, mais burra, mas talvez mais “sustentável” para usar um termo caro a nossos ecologistas.

Nossa aposta é que uma análise faz o contrário do Latinha velha. Partimos dos objetos a típicos e vamos em direção aos atípicos. Nesse caminho quem muda é o Outro do sujeito, e não seus objetos.

Teremos que dar um pouco mais de consistência a isso nos próximos encontros, mas precisamos examinar de perto o que seria uma invenção atípica. As soluções atípicas são aquelas que produzem seres um pouco desgarrados, mas ainda no social. As típicas produzem seres completamente dentro da massa. Como somos dos velhos tempos, estamos mais interessados nas soluções atípicas. Mas não pensem que estruturalmente a solução típica é muito pior. Não teríamos como comprovar isso sem nos valermos de um preconceito às avessas.

Quais serão nossos exemplos paradigmáticos de solução atípica? Os casos do semestre passado talvez sejam todos bons exemplos.[2] Neste semestre, em que buscamos exemplos mais “macro”, já temos o tema do intruso, tal como Jean Luc Nancy trabalha. Também é uma solução atípica; afinal, ele faz um livro inteiro sobre isso. Aquilo é uma invenção dele para localizar sua experiência como transplantado. A articulação dele com a mulher negra é fundamental para que ele possa dar lugar àquele intruso, um lugar de objeto ilimitado dentro do resto do corpo. Ele mostra como conseguiu produzir um corpo a partir de um intruso quando ele transforma aquilo num objeto ilimitado. Ele é “um coração negro que pulsa os tambores da mãe África” poderíamos supor.

Conversa em torno do Latinha velha[3]

Romildo do Rêgo Barros: Não vi o episódio do programa Latinha velha que vocês discutiram (apesar de ser capaz de discutir o caso do Fábio Junior – esse é o nome do menino –, uma vez que a estruturas são canônicas quando se fala de publicidade). Fábio tem um carrinho e quer que seja transformado. O programa acaba oferecendo em troca do carro novo total desconsideração daquele carro antigo como objeto causa de desejo para essa criança com a sua lata velha.

Ram Mandil: Tratou-se esse objeto sem a noção de causa. Parece que essa é uma perspectiva que a psicanálise é capaz de apontar: essa dimensão fundamental do objeto.

Marcus André Vieira: Certamente aquele carrinho do Fábio era causa de desejo, mas depois da verdadeira conversão consumista que opera o programa, o objeto causa de desejo para ele será também o carrinho novo. Precisaremos trabalhar para conseguir marcar a diferença entre o objeto causa de desejo falso, como disse o Romildo, e o que chamaríamos de verdadeiro. Certamente aquele resto, lata velha, parece para nós ter muito mais valor de causa do que sua versão 3.0, transformada, tal como opera o programa. Mas o perigo é ignorar que o mundo inteiro funciona no regime do 3.0, e que há desejo ali. Será que realmente diremos que o objeto causa de desejo é esse que conhecemos como resto? Será que o objeto causa é o carrinho antes, e no depois só há opressão do capitalismo? Precisamos de uma noção de objeto causa menos impregnada de imaginário para que sua forma e sua aparência sejam menos decisivas. Miller[4] propõe aqui distinguir um objeto a natural (não porque seria da natureza, mas porque articulado à forma corporal) e um artificial.

Ram Mandil: Poderíamos nos perguntar se a dimensão da causa não estaria sendo usada na publicidade. Responderíamos que certamente sim. O problema reside numa certa transformação nesse objeto causa.

Romildo do Rêgo Barros: Existe sempre uma produção da causa. E ela pode ser expressa sempre pelo objeto; caso contrário, a psicanálise seria uma reeducação. O que me parece é que nesse caso entram fatores imaginários que servem para recobrir a função da causa. Por exemplo, o garoto tem seu carrinho exatamente no estatuto que Winnicott, que foi um dos antecessores do objeto a lacaniano, chamaria de objeto transicional, um objeto que não é interno nem externo. A publicidade, por exemplo, investe em fatores imaginários. O carro novo, por exemplo, é um desejo universal. Então por que esse idiota não vai querer um carro novo quando ele tinha uma porcaria antes? Ele vai ser convertido no desejo universal do carro novo. Ou então pode ser substituído por uma série de objetos. No mesmo sentido, há um programa na televisão que reforma a casa. Existe a gestalt da casa que muda, os objetos dentro dela também. Tudo é diferente. O que vai sustentar esse sujeito do trauma, entendido aqui como falta, o que vai liberá-lo dele, é o fato de que ele vai entrar numa comunidade em torno de um objeto novo.

Marcus André: Esse recobrimento imaginário desconsidera a noção de resto. E esse resto é que marca a causa no sentido que nós estamos valorizando.

Romildo do Rêgo Barros: Podemos pensar também do ponto de vista econômico. Há um esvaziamento quase total do valor de uso. E em contrapartida um inchamento do valor de troca. O objeto vale se ele se inserir numa série de objetos que se trocam. O trauma do menino é justamente quando ele se depara com o vazio do próprio valor de uso, enquanto o valor de troca é metonímico. Ele tem dois momentos. Ele embarca no aspecto imaginário, que seria uma satisfação universal de sempre ter um carro novo e não um carro velho. E depois esse carro novo, quando é apresentado a ele, vem desguarnecido do valor de uso (chamaríamos de um investimento só dele). É o retorno do valor do objeto só para ele.

Marcus André Vieira: Nesse caso específico foi o menino que pediu, mas a estrutura do programa é sempre uma pessoa que pede para outra. O dono passa pela surpresa. Temos então uma espécie de conversão de quem está com seu o objeto e em princípio não está com sua demanda. Quero frisar que esse trabalho me parece a solução, uma má solução, certo, mas não em si um problema. Ela pode ser um problema, oprimir alguém que estava no bem-bom com seu carrinho, mas pode também ser uma solução em alguns casos. Se vamos demonizar universalmente o consumo, acabaremos numa guerra santa esquecendo o sujeito em cada caso que é o que conta. Digo isso porque frequentemente tomamos exemplos desse tipo como um massacre. Quando se está seguindo a série em direção ao ideal, o excedente está recalcado. O ideal na frente e o recalcado atrás movimentam o sujeito e sustentam o desejo. Se hoje o ideal sai do infinito, lá da frente, como colocaremos tudo em movimento? Vemos, então, que a conversão do programa produz uma solução coletiva para esse impasse.

Romildo do Rêgo Barros: Ele produz as duas coisas: um problema e uma solução. Eu tenho uma solução, tragam um problema. “Quero vender esta caneta Bic”, então provoca-se, em todos, a necessidade de comprar caneta Bic. Quando se conseguir, pode-se cobrar o quanto quiser.

Esse programa faz com que o menino acredite que todo mundo é suposto querer um carro novo. Não há ninguém no conjunto dos seres humanos que não queira um carro novo, logo, ele quer um carro novo. Isso é, digamos o plano convencional. Quando o carro novo chega, ele se assusta e diz: “Não!”. Ele quer o carro velho e se defrontou com a vanidade desse artifício. Na clínica vemos isso. Cada vez que há uma crise no imaginário sem apoio no simbólico, temos efeito no real. Há qualquer coisa de imaginário que, se fura, isso retorna para o menino e, como ele não dispõe de um S1, ele experimenta essa crise como aflição que retorna como satisfação quando ele adota o carro novo.

Ram Mandil: O que me chama atenção nessa história e que me parece o momento mais impressionante é justamente quando o menino sai daquele ambiente consternado emocionado. Percebemos que ele está em outra dimensão, perplexo. E parece buscar uma solução. Retomando o que eu disse, esse novo carro lhe introduz um órgão. Como vou habitar esse novo órgão? Não é pela via do universal do “todo mundo deve adorar um novo órgão”. Tanto que a solução dele foi que, para que ele levasse o carro novo, o velho também teria de ir. Isso foi uma invenção, aquilo que está em estado de perda marca um lugar para que o novo órgão possa ser recebido. A solução que o menino criou, nesse sentido, foi fantástica.

Elena Lerner: É interessante essa comparação, pois o que o programa frequentemente oferece não é um coração novo, e sim uma ponte de safena, o velho renovado. No caso do menino, ele conhecia o programa. Por isso, ele sacou a enganação.

Marcus André Vieira: Esse ponto é interessante. O programa não coloca um objeto novo no lugar de um velho. Ele reforma o velho para manter algo desse resto recalcado lá dentro. Esse é o jogo. No caso do menino não funcionou. Por isso, ele é interessante. Mas habitualmente funciona. De um jeito ou de outro, talvez pelo pior jeito, esse programa apresenta uma solução para o impasse do nosso tempo. Como fazer coletivo se só há uma chuva geral de objetos? O que pode nos reunir se não há nenhum objeto transcendente? Pequenos pactos localizados? É pouco. O programa propõe que todos nós teremos o mesmo objeto – como um ideal rígido, inerte por ser essencialmente imaginário. E quem resistir a isso vai ter que passar por essa maquina de transformação à custa de sua inserção no mundo. Já vi esse programa, Lata velha, com outras pessoas, adultos. Ninguém fica tão feliz imediatamente assim. Fica-se desconcertado. Mas o programa vem no lugar de uma missa consumista. Todos vamos sair felizes porque todos choramos na hora em que o garoto se converteu ao carrinho amarelo. Essa é a proposta coletiva de hoje. E nesse momento estamos nos referindo também a esses programas do tipo extreme makeover, em que o sujeito, por exemplo, fica parecido com a Madonna. Vemos claramente, também, que é a Madonna de Guadalupe, mas se não fosse assim não funcionaria. Se o sujeito ficasse realmente idêntico a Madonna, não adiantaria.

Romildo do Rêgo Barros: É porque há produção de excedente, exatamente como Freud diz no texto sobre o Chiste.[5] Existe a produção de algo a mais que faz a gente rir. Pensamos em Madonna de Guadalupe, e a Madonna de NY é esse diferencial que serve como uma constante ao qual eu me referia, faz rir, mas ao mesmo tempo torna possível, como diz Marcus, que A Madonna de Guadalupe seja uma solução. A solução que repousa justamente na produção desse diferencial. Esse diferencial em Lacan se chama objeto a. No sentido que é um diferencial absoluto.

Raquel Fialho: No programa quem escreveu a carta para o menino foi o pai dele. E durante o programa todo ele fica muito sensibilizado. O menino, além de lidar com o carro, teve que lidar com essa apreensão dos pais.

Marcus André Vieira: O primeiro risco que ele corre, caso se agarre demais a seu objeto transicional, é perder a família e não é à toa que no programa ele se agarra à mãe.

Lourenço Astua: O que um filme de terror, em que se brinca com o medo, teria de diferente ou de semelhante com essa situação do Latinha velha?

Romildo do Rêgo Barros: Até isso depende da época. Uma coisa é Nosferatu de Murnau (1922). Outra coisa é você fazer um filme colorido que se passa numa pequena cidade americana numa família completamente normal e repentinamente uma das crianças é aterrorizante. A iluminação do filme completamente diferente do castelo mal iluminado do conde Drácula, por exemplo. Existem diferentes maneiras que a cultura fornece ao longo do tempo para produzir esse diferencial absoluto. Há vários desses novos filmes em que a criança, loira, americana, olhos azuis, classe média, espalha o terror. Não é mais o conde Drácula, que se veste de uma forma que ninguém se veste.

Como é que se produz ou se evita produzir esse diferencial absoluto que, se não é causa de desejo, é trauma? Por isso a publicidade brinca conosco, nesse espaço que vai da causação de desejo para o horror ao trauma – isso quer dizer um gozo completo, ente outro impossível de se assumir pelo sujeito.

Hitchcock é um gênio nisso. Ele passa do terror para o suspense. Todo mundo sabe que o assassino não está no primeiro andar, e todo mundo sente medo quando Hitchcock filma uma subida nas escadas. Ela faz isso em todos os filmes e em todos eles morremos de medo e, sobretudo, todos sabemos que o assassino não está lá. Ele é quase um humorista. A produção do suspense está nessa permanente expectativa de relançamento do próximo passo. Cada passo pode ser o último. Enquanto se sobe a escada, nós estamos aterrorizados. O segredo de qualquer dimensão da arte ou da criação, da invenção dessas instituições culturais, existe um centro de gravidade, que é a produção de um objeto não equivalente aos outros. Vocês verão que não podem ser trocados. A publicidade usa o humor justamente para recobrir essa passagem que na verdade é um buraco entre o objeto que está na série e aquele objeto que é um furo puro, um buraco.

Obra, instalação e invenção

Marcus André Vieira: É possível imaginar, se nos apoiarmos no texto do Miller[6] e na teoria dos nós, que uma invenção corresponda a uma produção de objeto? Não creio que isso seja necessário. Até aqui assumimos que, sempre que há excedente, há objeto. Não haveria certo tipo de montagem, que estaria mais próximo de uma instalação no caso da arte, que talvez não produzisse um excedente localizado, um objeto-causa? Ao mesmo tempo, uma instalação produz uma conversão de libido e uma coletivização do excedente de que falamos, só que não pelo mesmo caminho. Ela tem uma função de “publicação do mais de gozar” que funciona, mas é difícil de dizer que o faz na mesma linha da obra de arte. Isso não é para dizer que uma é a evolução da outra. Não fica tão claramente localizado esse excedente produzido. Não caberia uma contraposição entre dois paradigmas: a instalação e a produção do objeto de arte? Pretendo prosseguir nesta tensão entre os dois nos próximos encontros a partir de nossos conceitos da seguinte forma: o modelo do oleiro, emprestado por Lacan a Heidegger, se articula com a teoria do objeto a, mas o modelo da trança, do nó borromeano, talvez não.

Romildo do Rêgo Barros: Podemos talvez acrescentar uma pergunta. Qual a diferença entra essa fluidez, essa liquefação de uma instalação – afinal, a instalação é uma obra que poderia não ter fim nunca, poderíamos prosseguir modificando-a para sempre – com relação ao simples relançamento do objeto a, que é usado ironicamente na publicidade? O que faz com que a trança de uma instalação vá para um museu, e outra dê em um comercial de televisão? Em todos existe exploração do que nesse seminário veio sendo chamado de ilimitação do objeto. Mas me parece, não saberia dizer agora, que não é a mesma coisa. Existe também uma discussão no plano da ética. A ética que informa a instalação certamente não é a mesma que informa a mercadoria, por exemplo.

Tentei trabalhar isso com o seminário sobre a sublimação. Por exemplo, o que faz com que o mictório do Duchamp possa ser considerado uma obra de arte? Se houver um dia em que ninguém mais souber quem foi Duchamp essa obra se acaba. Enquanto que se, mesmo se esquecermos quem foi Leonardo da Vinci, a Monalisa continua. Existe uma migração da questão estética para a questão ética. E o que é a dimensão ética? É o fato do objeto de arte incluir sua própria fabricação. Houve o caso de um francês, meio louco com certeza, que foi à exposição desse mictório e urinou nele além de quebrá-lo. E a justiça cobrou uma fortuna pelo mictório. Na verdade, ele teve um raciocínio interessante. Ele disse: “Fiz o que Duchamp faria se estivesse vivo”... ele consertou o gesto de Duchamp. Ou seja, a consequência última do gesto dele é que o objeto voltasse a ser um objeto utilitário. Você passa todo o percurso ético do objeto, desde a elevação à dignidade da coisa até o esvaziamento onde ele pode ser utilizado novamente. Também, me parece que essa necessidade de que o gesto do artista seja incluído na produção, na estrutura do objeto na arte do século. Claro que de lá para cá temos outras coisas, temos Orlan que usou o próprio corpo.

Ram Mandil: Há algo interessante sobre o estatuto da invenção, de pensar a forma do objeto e o modo como a invenção será acolhida. Levantou-se o aspecto da dignidade. Houve um momento de dignidade naquele ambiente “patológico” do Latinha velha. Uma relação com a dignidade é o que Lacan explora quando afirma que a sublimação é “elevar o objeto a dignidade de Das Ding”, e isso caracterizaria mais um objeto de arte, por exemplo. O problema que vemos nessa crise do Outro é que, de certa forma, a fronteira da arte me parece muito mais móvel do que parecia há pouco tempo. O Arthur Bispo do Rosário pode ser conhecido como artista e não com um sujeito que passou toda sua produção ou vida na terapia ocupacional de um manicômio. Podemos pensar como o mundo se relaciona com a arte e com os objetos de tal forma a tornar aquilo passível de ser reconhecido como obra de arte. Lacan tem uma pergunta no Seminário 3: As psicoses.[7] “Schreber é um poeta ou é um escritor?” Ele faz uma distinção bem nítida. Não admite que ele seja um poeta, mas sim um escritor. Uma diferença pelo lado da metáfora da criação, da possibilidade da criação de um mundo que gera uma simpatia no outro.


Derivas analíticas agradece a Marcus André Vieira pela amável autorização de publicação deste texto. Agradecemos igualmente aos demais participantes do seminário “Sintoma e Invenção”: Ram Mandil, Romildo do Rêgo Barros, Lourenço Astua, Raquel Fialho e Elena Lerner.

Marcus André Vieira é A.E e A.M.E da EBP-AMP. É professor assistente da PUC-RJ

Notas

[1]http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM472914-7822-LATINHA+VELHA+UM+MOMENTO+MAGICO+IMPERDIVEL,00.html (acesso em 22 de janeiro de 2009).

[2] Casos apresentados no seminário Sintoma e Invenção, da EPB-Rio, realizado no Instituto Philippe Pinel, no primeiro semestre de 2008, em parceria com o Núcleo de Saúde Mental da EBP-Rio, e publicados em Caminhos de estabilização na psicose, Rio de Janeiro, ICP-Andamento, 2011.

[3]<http://video.globo.com/Videos/Player/Entretenimento/0,,GIM472914-7822-LATINHA+VELHA+UM+MOMENTO+MAGICO+IMPERDIVEL,00.html>. Acesso em: 22 jan. 2009.

[4] MILLER, 2003.

[5] FREUD, (1905) 1995.

[6] MILLER, 2003.

[7] “Nós poderíamos resumir a posição em que estamos em relação ao seu discurso quando tomamos conhecimento disso, dizendo que, se ele é com toda certeza um escritor, não é um poeta. Schreber não nos introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz num mundo diferente do nosso, e, ao nos dar a presença de um ser , de uma certa relação fundamental, faz com que ela se torne também a nossa” (LACAN, 2002, p. 94).

Referências

FREUD, S. Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1995. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 8).

LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

MILLER, J-A. A invenção psicótica. In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 36, São Paulo, maio 2003, p. 6-16.

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