Orientação freudiana 

 

Excerto extraído do posfácio ao volume Fundamentos da clínica psicanalítica.
Tradução de Claudia Dornbusch. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
(Obras incompletas de Sigmund Freud).[i]

 

Sérgio Laia

 

 

 

Os textos reunidos neste volume das Obras incompletas de Sigmund Freud perfazem uma extensa trajetória temporal, pois vão desde o que já se considerou como os primórdios (ou mesmo a “pré-história”) da psicanálise até praticamente um dos últimos trabalhos publicados por aquele que a criou. 

Essa extensão, além de se fazer ao longo do tempo, comporta ainda todo um processo de elaboração clínico-conceitual. O texto que abre esta coletânea, Tratamento psíquico (tratamento anímico), é de 1890 e explicita as especificidades do que é o processo terapêutico que Freud já procurava então apurar. Por sua vez, os dois últimos textos são A análise finita e a infinita e Construções na análise, ambos de 1937: no primeiro, Freud, entre tantas outras importantes considerações, argumenta por que uma análise é ao mesmo tempo longa e, mesmo sem ser necessariamente permanente quanto a seus resultados, pode ser considerada eficaz; no segundo, ele explicita uma operação clínica – a chamada “construção” – que terá uma função decisiva no encaminhamento do fim de uma análise, por não se valer apenas das lembranças (ou seja, das representações do passado), por se pautar no que se perdeu sem deixar nenhum registro na realidade, mas que se impõe ainda na vida. 

Os textos aqui reunidos apresentam também um endereçamento bem diversificado: destinam-se, como lemos em O método psicanalítico freudiano, de 1904 [1905], a chamar a atenção para um método terapêutico então recente ou, por exemplo, em Recomendações ao médico para o tratamento analítico (1912) e A questão da análise leiga (1926), a zelar pela formação do analista ou, ainda, como em Caminhos da terapia analítica (1919 [1918]), a garantir o futuro da psicanálise, conclamando os analistas a renová-la frente à devastação provocada por uma guerra mundial e pela pobreza, antecipando suas intervenções no âmbito da hoje chamada “saúde pública”. 

[...] 

Nessa ampla extensão temporal e clínico-conceitual e nessa variedade de destinos, uma orientação se sustenta e, me parece, o título deste volume a apreendeu muito bem: trata-se de dar lugar, fazer valer e operar os fundamentos da clínica. Porém, conforme experimentamos no trabalho com esses textos e na nossa própria prática, provavelmente também tal qual Freud o terá provado criando e dedicando-se ao exercício da psicanálise, bem como na própria redação de sua obra, não é tarefa fácil fundar a clínica e, de modo especial, uma clínica como a psicanalítica. Afinal, nessa clínica, trata-se de intervir não exatamente sobre o que uma clínica médica discerne como sendo os “órgãos” do corpo, nem sobre o que os filósofos antigos abordavam como psique ou anima e que, após o século XIX, segundo perspectivas muito diferentes, profissionais marcados pelo prefixo psi- passaram a chamar de “mente”, “psiquismo” ou “cérebro”. Na clínica psicanalítica, tal como Freud já entrevê em 1890, no primeiro texto publicado neste volume, a intervenção se processa sobre as modificações que a “vida anímica” provoca no “corpo”, mas da qual esse corpo também participa intensamente através dos “afetos”[1] que, por sua vez, não se confundem com os chamados “sentimentos”, nem com “manifestações físicas” do corpo. Afinal, a concepção freudiana de afeto designa um quantum, ou seja, uma quantidade que, sem ser propriamente mensurável ou quantificável, afeta, toca o corpo. Em outros termos, na clínica analítica, a intervenção se faz sobre uma espécie de matéria que concerne ao corpo sem ser propriamente orgânica e que toma vida sem se confundir com o que, sob diferentes perspectivas, é designado como “espiritual”, “mental” ou “psíquico”. 

Como fundar, então, uma clínica, se a matéria sobre a qual e com a qual trabalhamos na psicanálise toma a dimensão de um objeto sem ser propriamente objetivável, dá lugar a um lugar que, por se apresentar mais como uma fronteira não é exatamente localizável e, mesmo sendo capaz de aumentar ou de diminuir, produzindo tensões e alívios, não é efetivamente mensurável? Sabemos, inclusive pela leitura de textos publicados aqui como Sobre a dinâmica da transferência, Observações sobre o amor transferencial, A análise finita e a infinita, que a formulação e o manejo da transferência por Freud são decisivos para se fundar a clínica psicanalítica e sustentá-la, mas, também nesse viés, um novo paradoxo se impõe: a transferência, concebida como o investimento libidinal que cada analisando(a) faz em seu(sua) analista, é tanto “a força mais poderosa do sucesso” quanto “meio mais forte de resistência”[2] e, assim, ainda nesse viés, o que se apresenta como fundamento se mostra por demais fluido, cambiante, o que nos serve de apoio também se volta contra nós. Não é sem razão, portanto, que, em A análise finita e a infinita, Freud declara: “temos a impressão de que não trabalhamos com argila, mas que escrevemos sobre a água”.[3] 

Como, então, escrever sobre a água sem que o exercício mesmo de nossa clínica se dilua? Como dar corpo à experiência analítica se ela é marcada tanto pela mutação dos sintomas quanto pela permanência inexorável, inclusive frente à própria ação terapêutica, daquilo que “alguma vez ganhou vida” e “sabe se manter de forma tenaz”?[4] São desafios assim que Freud se dispôs a enfrentar para fundar a clínica analítica e que, como analistas, a cada experiência com a psicanálise, continuamos enfrentando. 

[...] 

O título deste volume, Fundamentos da clínica psicanalítica, bem como o que Freud promove nos textos aqui reunidos, me fizeram evocar o modo como, em alemão, o termo para “fundamento” (Grund) é bem próximo do que pode se apresentar como seu revés, isto é, do “abismo” (Abgrund). Assim, Grund “originalmente significava ‘areia, solo arenoso, terra’” e passou a ser correspondente também de “‘lote (de construção); campo; fundo, leito (de mar); fundação, profundezas, base; razão, causa’”, mas, ao ser escrito com o prefixo ab-, dá lugar à palavra Abgrund que significa, literalmente, “‘terra indo para baixo’”, “‘profundezas insondáveis, abismo, fundo abissal’”.[5] Importante lembrar que o “fundo abissal” que podemos encontrar no termo Abgrund não tem nada a ver com a ausência ou a falta de fundamento porque, para o sem-fundamento, a língua alemã oferece-nos uma palavra diferente: Grundloss. 

Sabemos que Heidegger se valeu bastante dessa, digamos assim, tensa proximidade entre “fundamento” (Grund) e “abismo” (Abgrund), entre o que funda e ao mesmo tempo se esvai dando lugar a um oximoro como fundamento abissal ou mesmo fundo abissal. Embora Freud escrevesse em alemão e, como sabemos, exercitasse essa língua como poucos,[6] ele não explorou essa tensa proximidade existente entre Grund e Abgrund. Porém, minha hipótese é de que ele a realiza em ato, ao inventar a clínica psicanalítica e desejar fazê-la chegar até nós de modo que também passemos a desejá-la e fazer com que ela continue se transmitindo às gerações futuras. 

[...] 

Assim, é sobre um fundo abissal que construímos, desde Freud, a clínica analítica porque a matéria com que lidamos é tão ou mais fluida que a água e não menos perturbadora que esse elemento líquido capaz de se imiscuir nas mínimas frestas e mesmo de furar o que é duro, firme e resistente. 

[...] 

Mas é igualmente importante levar em conta o fundo abissal que o corpo do analista apresenta na transferência que lhe é dirigida. Por um lado, em textos como A dinâmica da transferência (1912) e Lembrar, repetir e perlaborar (1914), Freud almejou que – ao emprestar seu corpo à transferência – o analista permite abater o que não poderia ter esse fim “in absentia ou in effigie”,[7] assim como possibilita ao analisando aprofundar-se “na resistência que lhe era desconhecida, para perlaborá-la, superá-la, na medida em que ele, a ela resistindo, continua o trabalho de acordo com a regra analítica fundamental” da associação livre.[8] Por outro lado, em um texto mais tardio como A análise finita e a infinita (1937), o Freud que há quase duas décadas já formulara a pulsão de morte poderá, então, destacar a existência de “fenômenos residuais” relacionados à transferência em análises que já teriam chegado a seus respectivos fins, assim como a perturbadora incidência do “fator quantitativo” determinante para o que uma análise pode comportar de infinito porque, “às vezes”, ela “realmente conseguiria desligar a influência da intensificação da pulsão, mas não com regularidade”.[9] 

Desde os primórdios da psicanálise até os nossos dias, mas também, muito provavelmente, no futuro para o qual procuramos destiná-la, essa ausência de regularidade – derivada da impossibilidade de se desligar o impacto da pulsão nos corpos – é tomada como uma ineficiência da clínica analítica para tratar os sintomas que a ela se endereçam. Entretanto, essa ausência de regularidade quanto a tal desligamento ou, mais ainda, a impossibilidade de operá-lo, designa efetivamente o que a vida tem de perturbador e de perigoso, bem como o que a clínica analítica não pretende eludir de seus fundamentos e de seus procedimentos. 

Na história da psicanálise, essa problemática acerca dos fenômenos residuais de uma análise, derivada inicialmente do que o próprio Freud pôde constatar na retomada do tratamento daquele que ficou conhecido como “o Homem dos Lobos” ou, sob a forma de “transferência negativa”, da própria análise de Ferenczi,[10] conhecerá um desdobramento importante, a meu ver, com Lacan. Poderemos, então, considerar que uma análise não operaria exatamente um desligamento, mas uma “retificação” do “estado de satisfação da pulsão”[11] de modo que, ao final e mesmo “mais além da análise”, um analisante encontraria outro modo de “viver a pulsão”[12] e a meta que esta sempre mantém de satisfazer-se. Trata-se de uma perspectiva diferente daquela que consistiria em, mesmo sem garantia de regularidade, “desligar” a pulsão. Nesse outro modo de “viver a pulsão”, encontraríamos o quanto a satisfação pulsional comporta uma opacidade que insiste ao longo de toda uma análise e ganha, com a análise, algum contorno, alguma localização, mas insiste sem qualquer possibilidade de desligamento ou apagamento: analisa-se, portanto, para se haver com uma satisfação que se reitera sem se deixar negativizar porque ela é também, mesmo perturbando-os, o que confere vida aos corpos e implica uma parceria da qual não há propriamente como se livrar ou afastar.[13] 

A orientação freudiana, mesmo quando, muito pontualmente, parece vacilar quanto à impossibilidade de se domar a satisfação pulsional que perturba os corpos sob a forma de sintomas, não deixa de guiar-nos hoje e sempre. 

[...] 

Como a clínica psicanalítica procede, segundo Freud, per via di levare, trata-se, então, de extrair, inclusive desses momentos onde ele parece vacilar, uma orientação que não é outra senão aquela designada bem mais tarde como “orientação do real”,[14] ou seja, como o que endereça a clínica analítica rumo ao que é incurável e ingovernável na pulsação mesma da vida e que, com as palavras, ressoa nos corpos.
 

Sérgio Laia é psicanalista, analista membro da escola (AME) pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e membro da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), professor titular IV do curso de psicologia e do mestrado em estudos culturais contemporâneos da Universidade FUMEC (Fundação Mineira de Educação e Cultura); pesquisador apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e pelo Programa de Pesquisa e Iniciação Científica (ProPIC) da Universidade FUMEC; autor de Os escritos fora de si (Ed. Autêntica).
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Referências: 

[1] FREUD, S. Tratamento psíquico (tratamento anímico). In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 24. (Obras incompletas de Sigmund Freud). 

[2] FREUD, S. Sobre a dinâmica da transferência. In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 110 (Obras incompletas de Sigmund Freud). 

[3] FREUD, S. A análise finita e a infinita. In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 347 (Obras incompletas de Sigmund Freud). 

[4] FREUD, S. A análise finita e a infinita. In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 331 (Obras incompletas de Sigmund Freud). 

[5] Valho-me aqui, especialmente, do verbete “Fundo, fundamento e abismo” em: INWOOD, M. Dicionário Heidegger (1999). Tradução de Luísa Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. p. 74-76. 

[6] Em seu primoroso trabalho de coordenador de tradução destas Obras incompletas de Sigmund Freud, Pedro Heliodoro Tavares tem oferecido vários parâmetros para que o leitor brasileiro ou de língua portuguesa possa comprovar o modo preciso com que Freud opera e se deixa atravessar pelo alemão. Nesse contexto, além de reiterar o que já foi sustentado por outros tradutores brasileiros da obra freudiana e por um poeta-tradutor do quilate de Haroldo de Campos, esse coordenador também tem depurado essa faceta de Freud como espécie de mestre-artesão da língua alemã. Para a referência a Haroldo de Campos, recomendo: CAMPOS, H. O afreudisíaco Lacan na galáxia de lalíngua (Freud, Lacan e a Escritura) (1988). Correio, n. 18/19, Belo Horizonte, Escola Brasileira de Psicanálise, 1998. p. 136-162. Destaco, por fim, que essa tensa proximidade entre “fundamento” e “abismo” não deixa de aparecer, ainda que sem que o termo Abgrund (“abismo”) seja citado como tal, na concepção freudiana do que é um “conceito fundamental” para a ciência e para a psicanálise; ver especialmente os dois primeiros parágrafos de As pulsões e seus destinos. Recomendo-lhes, também, a leitura de um excelente estudo sobre a “metodologia” sustentada por Freud na formulação dos conceitos que são “fundamentais” para a clínica analítica: IANNINI, G. Epistemologia da pulsão: fantasia, ciência e mito. In: FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915). Tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p. 91-133. 

[7] FREUD, S. Sobre a dinâmica da transferência. In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 118. (Obras incompletas de Sigmund Freud). 

[8] FREUD, S. Lembrar, repetir e perlaborar. In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 161. (Obras incompletas de Sigmund Freud). 

[9] FREUD, S. A análise finita e a infinita. In: ______. Fundamentos da clínica psicanalítica. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. p. 330. (Obras incompletas de Sigmund Freud). 

[10] Ver nota editorial de A análise finita e a infinita, op. cit., p. 362. Para essa passagem relacionada à transferência negativa, ver p. 322. (Obras incompletas de Sigmund Freud). 

[11] LACAN, J. Le séminaire. livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Paris: Seuil, 1973. p. 152. 

[12] LACAN, J. Le séminaire. livre XI: les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (1964). Paris: Seuil, 1973. p. 246. 

[13] Como já mostrava Freud, em seu texto As pulsões e seus destinos, não há como fugir do impulso pulsional porque ele é “interno” aos corpos, não se impõe “de fora”; ver FREUD, S. As pulsões e seus destinos (1915). Tradução de Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. Para a formulação do que há de não negativizável na satisfação pulsional que se apresenta no próprio sintoma, ver, por exemplo, MILLER, J.-A. Perspectivas dos “Escritos” e “Outros escritos” de Lacan. Entre desejo e gozo (2008-2009). Tradução de Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 9-226. 

[14] LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 115-124. 

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Notas

[i] Neste excerto do posfácio, adotou-se a notação […] sempre que foram suprimidas partes do texto original. A leitura completa desse original poderá ser feita diretamente no volume Fundamentos da clínica psicanalítica, que compõe a coleção Obras incompletas de Sigmund Freud, da Editora Autêntica.

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