Do significante ao signo[1]

 

Lilia Mahjoub

 

 

Este congresso chega ao fim. Seu título nos mobilizou seriamente durante dois dias: Signos discretos nas psicoses ordinárias. Clínica e tratamento.

O termo “signo”, que, como se sabe, Lacan tomou emprestado da linguística e, mais precisamente, de Ferdinand de Saussure, designava, segundo este, uma entidade psíquica de duas faces, ou seja, a combinação do conceito e da imagem acústica. Lacan extrairá daí seu famoso algoritmo: significante sobre significado. Desde então, esse algoritmo psicanalítico não se referirá mais ao signo linguístico. Ele se distinguirá radicalmente dele.

Para Lacan, há duas vertentes da linguagem: a do sentido que o significante produz e a do signo que se opõe ao primeiro. A vertente do sentido vai, evidentemente, até o sem sentido, mas permanecemos com o sem sentido no registro do sentido. Em 1998, na Convenção de Antibes, Jacques-Alain Miller, a quem devemos a expressão “psicose ordinária”, propôs estender o conceito de distúrbios da linguagem para além do neologismo, a saber, que os distúrbios da linguagem não ficassem reservados unicamente às perturbações do significante, mas que convinha estendê-los às perturbações da significação. Podemos hoje acrescentar aí o signo, por mais discreto que ele seja.

Evocarei um exemplo que Lacan citava bem no início de seu ensino, aquele de um paciente psicótico que lhe dizia o quanto tinha entrado, havia algum tempo, num mundo estranho, ou seja, para ele tudo tinha se tornado signo. Em outras palavras, todos os tipos de signos se dirigem a ele, “ele é espiado, observado [...] olham-no, piscam-lhe o olho, etc.”,[2] e isso acontece até mesmo com os objetos inanimados. Por exemplo, quando ele vê um carro vermelho na rua, não é por acaso que ele passou por ali. Trata-se de uma intuição delirante, se esse carro está ali por algum motivo, ele não é, contudo, capaz de fornecer sua significação. O que faz signo para esse homem provém de um distúrbio da significação, mesmo que ela não possa ser formulada e fique em suspenso; em outros termos, ele nada pode articular na vertente do sentido.

De forma diversa, em outro caso de Lacan, uma mulher lhe relata algo de singular que se produz, por exemplo, quando ela está dirigindo e “surge um alarme de um móvel que a faz monologar algo como: ‘Meu Deus, um carro!’”[3] [...] “ela se apercebe, então, da existência de uma inchação vaginal”.[4] Ela acrescenta que esse fenômeno pode se produzir também com o surgimento de qualquer objeto que, além do mais, é totalmente estranho ao espaço sexual. Longe de ser desagradável, isso é um pouco embaraçoso, mas esse estado cede por si só. Essa mulher tem, aliás, uma sexualidade, se assim podemos dizer, totalmente normal. O que é importante sublinhar é o que ela diz sobre isso que vem da transferência. Relata a Lacan que o que lhe acontece assim, com qualquer objeto, a obriga a evocá-lo, seu analista, como testemunha; a convocar pelo menos seu olhar para ajudá-la a dar a cada coisa seu sentido. Não desenvolverei aqui tudo o que Lacan extrai desse caso; se ele o evoca não é certamente para falar da psicose, mas, antes, para situar o que acontece com sua analisante na vertente da sexualidade feminina.

Lacan define o signo como aquilo que representa alguma coisa para alguém, esse alguém que está aí como suporte do signo, isto é, alguém accessível ao signo. O significante, por outro lado, é o que representa o sujeito, não para alguém, mas para outro significante. Consequentemente, o sujeito não pode ser apreendido como tal por alguém.

A questão para o analista é poder situar bem a quem se endereçam esses signos. A ele ou a seu paciente? Que o analista possa identificá-los, lê-los, mesmo que o paciente não os articule em termos significantes, não quer dizer que isso se enderece a ele, pois seria muito problemático.

Poderíamos dizer dos signos, na medida em que diferem dos significantes, inclusive daqueles de lalíngua, onde basta uma bateria, que eles são as raízes da estrutura em que se constitui a linguagem. Trata-se, tal como formula Lacan, do “real-da-estrutura”.[5] São esses signos que o analista terá que decifrar, ler, o que não é de modo algum evidente, já que o paciente, não digo o sujeito, nada pode dizer sobre eles.

A entrada do significante no real se deve à repetição de traços aparentemente idênticos, o que engendra a diferença absoluta. No simbólico, o significante S1 não é idêntico a S2, mesmo que eles sejam aparentemente semelhantes. Ao apagar todos os traços da coisa, o sujeito fez emergir o significante. Pensamos, é claro, no jogo do Fort-da.

Ora, Lacan sublinha que o neurótico é aquele que “quer apagar esse apagamento”,[6] a saber, que esse advento do significante não tenha acontecido e que se possa reencontrar o que há de real na origem, isto é, aquilo de que esse advento é o signo. Temos um belo exemplo disso no acesso de raiva do “Homem dos Ratos”, que, quando criança, gritou com seu pai: “Você lustre! Você guardanapo! Você prato! etc.”,[7] cena que produziu tanto no pai quanto nele uma impressão duradoura.

Transformar o significante naquilo de que ele é o signo, só poderá falhar para o neurótico, já que, para isso, ele não pode fazer apelo senão ao significante. Cada esforço que ele fará para abolir o efeito do significante só reforçará essa falha.

Como diz Lacan, “é fazendo com que o advento da função significante não se produza que encontramos o que há de real na origem, a saber, aquilo de que tudo isso é o signo”.[8] Daí a aposta em que o neurótico possa atingir, na sua análise, esse ponto.

Não é assim que acontece nas psicoses ordinárias, sobre as quais nos interrogamos, não a partir do significante, mas do signo.

Se o significante é imediatamente percebido como um significante, o mesmo não acontece com o signo. É por isso que eu falava antes do pouco de evidência dos signos, o que é, aliás, o que os faz serem ditos discretos. O uso do adjetivo discreto não é próprio do signo, ele foi utilizado por Lacan para o significante, para indicar que a cadeia significante era descontínua, isto é, feita por elementos separados e diferentes. O mesmo não acontece com a discrição dos signos. Veremos isso mais adiante.

Tomemos o famoso exemplo ligado à expressão “não há fumaça sem fogo”, a saber, se há fogo é porque alguém o acendeu, mesmo se for preciso perceber que não houve nenhum autor. Isso para dizer que, no signo, é uma intenção que é primeiramente suposta, uma intenção que não se cruzaria com o significante, contrariamente ao que articula o grafo do desejo de Lacan onde se tem a linha da intenção que cruza os dois andares das cadeias do significante e do significado.

Não se trata certamente de fazer do signo algo de pré-verbal, visto que ele pertence à linguagem, mas algo não se traduz imediatamente na cadeia significante.

O signo se encontra em uma relação de exterioridade para com aquele que está aí implicado, isto é, isolado e sem relação com outro signo, contrariamente ao significante, que se relaciona com outro significante.

Podemos, no entanto, dizer que o significante é signo de um sujeito, porque o sujeito é uma hipótese e só se torna sujeito por um significante para outro significante. Eu lembrava no início que o signo era algo que não se endereçava ao sujeito, mas a alguém, alguém que podia ser o seu suporte. Ora, esse alguém só poderia ser o seu suporte na condição de não fazer dele um significante, isto é, que ele não coloque aí seu próprio significante.

Vejamos o caso de uma mulher, alta funcionária do Estado, que vem se consultar comigo depois do que chamamos, hoje, de Burn out. Nenhum distúrbio de linguagem, nenhum delírio, mas um pensamento que alcança a palavra com fluidez, um questionamento que deixa entender que essa pessoa está aberta ao desejo de saber; ela tem uma família que não é um problema. Em suma, é uma mulher normal, mas que sofre por trabalhar demais e tem dificuldades para desacelerar, como ela diz. O que observei, ao final de um certo número de sessões, é que, às vezes, não no meio de uma frase, mas entre certas falas, quando ela fica silenciosa, ela remexe os lábios. Não são palavras que ela articularia sem som, como uma espécie de tropeço (me parece que se trata de hesitação), mas um movimento dos lábios que não deixa adivinhar nenhuma palavra.

De forma alguma eu lhe teria lançado então um “o que você está dizendo?”, pois não estávamos na dimensão da palavra, que remete à falha, no limite do significante.

O que é surpreendente, quando Lacan dá seu seminário em 1975-1976, O sinthoma, é que, em momento algum a teoria do significante está em questão. Não que o simbólico tenha desaparecido, nós o encontraremos no nó que Lacan faz do real, do simbólico e do imaginário. Ele menciona até mesmo que a própria metáfora vem daquilo que faz nó em uma corda.[9]

Sabemos que a partir de Joyce Lacan acrescentará um quarto termo a esse nó, o sinthoma.

Em 1977, no Seminário seguinte, ele enunciará: “tudo o que é mental, eu escrevo com o nome de sinthoma, isto é, signo”, e acrescenta que ele quebra a cabeça ao se perguntar “o que quer dizer ser signo”. “O signo, ele menciona, então, deve ser procurado como congruência, −~, do signo ao real.”[10] Um signo, se isso não se diz, se isso não se ouve, isso se escreve realmente, daí que isso se leia.

Isso já estava esboçado em Televisão, a respeito da vertente do signo que evoquei no início, e a respeito da qual Lacan se perguntava como nem mesmo o sintoma tinha traçado a via dessa vertente. É o que ele vai elaborar mais tarde com o sinthoma.

Tudo isso para dizer do interesse que Lacan tinha pela distinção a ser feita entre o signo e o significante, um congruente com o real e o outro com o sentido. E é o que esse congresso tentou retomar com uma clínica mais próxima do real, pela abordagem que nós podemos ter do signo. Confundi-los puxando o signo para o lado do significante comportaria riscos, como uma saída da psicose ordinária, no sentido de um desencadeamento ou mesmo de uma complicação transferencial.

Sábado, nosso colega Jacques Borie lembrava que Lacan dizia, de si mesmo que, enquanto psicanalista, ele era advertido quanto ao signo. De fato, o signo adverte o psicanalista para que ele não leve as coisas para além do ponto em que elas estão. Se podemos fazer consistir o sintoma, assim como ele diz em Televisão, como um nó de significantes que podem ser amarrados e desamarrados, ou dizendo de outra forma, “[...] como esses nós que realmente se constroem ao formarem uma cadeia com a matéria significante [...]”,[11] Lacan dirá mais tarde, a respeito de Joyce, que “o sintoma, na medida em que nada o vincula ao que constitui a própria lalíngua que é suporte dessa trama, dessas estrias, desse trançar de terra e de ar com que ele abre Chamber Music”:[12]

Strings in the Earth an air

Make music sweet

Esse sintoma é “[...] puramente o que lalíngua condiciona, mas de certo modo, Joyce o eleva à potência da linguagem, sem com isso torná-lo analisável”.[13]

Lacan acrescenta, e as palavras aqui são fortes, “[...] que nos proibimos de jogar com quaisquer equívocos que abalariam o inconsciente de qualquer um”.[14]

Assim, deve-se ler Joyce sem buscar compreender, e se esses livros são lidos, é porque o gozo daquele que os escreveu está presente neles. Contrariamente à psicose ordinária, o psicanalista deve poder fazer o caminho no sentido inverso, o que certamente não o levará à psicose, mas a esse ponto onde a cadeia significante para de produzir sentido. E compreendemos por que Lacan se lamentava, não somente de não ser suficientemente poeta, mas também psicótico.

Tradução: Márcia Bandeira

Revisão da tradução: Maria Bernadete Carvalho

Lilia Mahjoub é psicanalista em Paris. É AME das seguintes escolas da AMP: EBP, ECF, EOL, NLS.

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Referências

FREUD, S. Notas sobre um caso de neurose obsessiva (1909). In: ______. Duas histórias clínicas: “O pequeno Hans” e “O homem dos ratos” (1909). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 139-215. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 10).

LACAN, J. Le séminaire, livre XXIV: l’insu que sait d’une-bévue s’aille à mourre (1976-1977). Ornicar?, Paris, Lyse, n. 12/13, p. 17, 1977.

LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Vera Ribeiro. Versão final de Angelina Harari. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 3: as psicoses (1955-1956). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Aluísio Menezes. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 9: a identificação (1961-1962). Lição de 14 de março de 1962. Inédito.

LACAN, J. Televisão (1974). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Versão final de Angelina Harari e Marcus André Vieira. Preparação de Texto de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 508-.543. (Campo Freudiano no Brasil).

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Notas

[1] Texto da intervenção de fechamento do Congresso da NLS, Dublin, 2 e 3 jul. 2016.

[2] LACAN, (1955-1956) 2010, p. 18.

[3] LACAN, (1962-1963) 2005, p. 207.

[4] LACAN, (1962-1963) 2005, p. 207.

[5] LACAN, (1974) 2003, p. 535.

[6] LACAN, (1961-1962), lição de 14 mar. 1962.

[7] FREUD, (1909) 1996, p.179-180.

[8] LACAN, (1961-1962), lição de 14 mar. 1962.

[9] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 41.

[10] LACAN, (1976-1977).

[11] LACAN, (1974) 2003, p. 515.

[12] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 163.

[13] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 163.

[14] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 162.

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