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logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-2637

 

Sobre coletivos e singularidades

 

Marina Recalde
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
pela Escuela de la Orientación Lacaniana (EOL)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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Quando recebi o convite para participar desta preciosa revista, Derivas Analíticas, lembrei-me de Achille Mbembe, um filósofo camaronês que conheci através do meu amigo Marcus André Vieira, por ocasião de uma das Jornadas da EBP no Rio de Janeiro.

Decidi partir daí, já que funcionou e funciona para mim como uma bússola para poder pensar sobre minha própria experiência do fim da análise e o que pude trazer para a conversa e debater com diferentes correntes do feminismo e da luta contra o racismo.

Por que digo que é uma bússola? Porque esse filósofo, de maneira muito aguda, me permite pensar, por um lado, a tensão que há entre o coletivo e o singular, e, ao mesmo tempo, poder situar os pontos de conexão.

Interessou-me já que leva em conta questões que, para mim, são cruciais: o atravessamento dos binários: brancos-negros, homens-mulheres, ricos-pobres… definitivamente: nós-eles. Atravessamento necessário para encontrar outro modo de habitar o mundo.

Acredito que ali está a chave para poder estabelecer em que a psicanálise vai contra qualquer totalitarismo.

Mbembe (2016, s/p), com uma lucidez extrema, afirma: “Quando o poder brutaliza o corpo, a resistência assume uma forma visceral”. E isso me impactou porque efetivamente, talvez, esse aferrar-se a uma identidade seja uma maneira de resistência visceral, mas como resposta à brutalização do corpo exercida pelo poder.

Temos um nível no qual o particular conta, e fazer parte de um conjunto também se torna importante. Ou seja, há um nível no qual um sujeito é idêntico aos outros mas, em sua singularidade, por sua vez, esse sujeito é único e incomparável e isso não se coletiviza.

Contudo, o que temos nós, analistas de orientação lacaniana, para dizer a esse respeito? Em que uma análise levada ao final pode permitir a alguém contornar essa tensão entre o coletivo e o singular?

São aqueles movimentos coletivos os que colocam, ou ao menos tentam colocar, um limite a essa brutalidade do Outro, para impedir que esse corpo seja massacrado, humilhado, violentado, invisibilizado. É o vivificante dessa resistência visceral a que se refere Mbembe. E para possibilitar que cada sujeito desse coletivo encontre, no outro, um par que lhe permita sustentar melhor essa resistência. Nem toda identificação é mortificante. Algumas vivificam. Ademais, penso que esses movimentos são, em certo nível, absolutamente necessários, potentes e esperançosos.

E temos outra vertente da identificação, na qual o neurótico encontra-se à vontade, identificando-se a um lugar que, claramente o nomeia, mas, ao mesmo tempo lhe proporciona sofrimento, lado mortificante que toda identificação implica, pelo gozo que carrega.

Ponto que se coloca em jogo em uma análise, para se opor a ele, dando voltas que requerem muito tempo. Tempo que coloca à prova até onde alguém está disposto a esvaziar e perfurar, na medida do possível, esses significantes que produzem uma mortificação.

A segregação não é um tema que me havia sido alheio. Tampouco a tentativa de tornar esse gozo homogêneo.

Em meu caso, minha cor de pele escura me atormentava, já que me localizava em um conjunto depreciável, identificada ao pai, em que os loiros, de olhos claros e pele branca, eram os que tinham acesso a uma vida da qual eu era excluída. O movimento sempre implica localizar-se em um binário, que irremediavelmente se reduz a um “Eles” e “Nós”. Lógica que reforça as identificações massificantes e que aliena cada um a um ideal. Sabemos os efeitos ruins disso.

Com a neurose, busquei armar um corpo e uma pele amável para mim e para o Outro. Com a análise levada até o final, consegui desarmar essa “cromatocracia” disparatada na qual eu mesma me havia prendido.

Primeiramente, de maneira fixa e ininteligível, e logo, à medida em que o esclarecimento do sintoma e do fantasma iam tendo lugar na análise, esse contraste era apresentado de outros modos, mas o negro e o branco seguiam tendo seu protagonismo. As voltas com a história dos contrastes (ser pobre entre os ricos, feia entre as lindas) começou a reduzir-se a um contraste essencial: uma negra entre os brancos, localizada em um lugar de injúria.

Essa marca foi reaparecendo sob diversas formas, mas evidenciando que o sintoma e o fantasma ainda seguiam operando.

A cor da pele perturbava de maneira dramática. Dramatismo enfatizado pelo fato de que era algo não somente ineliminável como também era algo indisfarçável.

Queria ser branca a todo custo. Cheguei a machucar meus joelhos numa tentativa desesperada de branqueá-los. Em suma, era eu mesma que me havia erigido como portadora dessa depreciação pelo negro e a havia atribuído ao Outro cruel que tinha inventado para mim.

Mas, com a análise, entendi que tudo aquilo foi uma tremenda invenção da neurose para tentar capturar um aspecto do corpo que não se deixa capturar. E que aquilo que persiste é ineliminável, chama-se gozo e é o que nos dá uma identidade – que nós nomeamos sinthomal – ao final do percurso.

Como analista, pude constatar que não há classe e nem conjunto que possa agrupar a um sujeito, negro, branco, homem, mulher, lindo, feio... Que todos somos, como dizia Fernando Pessoa, uma exceção a uma regra que não existe (mas que a neurose tenta fazer existir, uma e outra vez, com essa insistência rígida que somente os neuróticos podem sustentar de maneira tão fracassadamente exitosa). Hoje isso já não me mortifica; em vez disso, encontro nesses contrastes uma satisfação. A negra já não está irremediavelmente ligada à injúria.

Como cidadã, respeito e incentivo os movimentos coletivos que implicam uma resistência viva ali onde um Outro tenta esmagar o diferente de um lugar de poder muito difícil de combater. Talvez alcançá-lo seja logicamente impossível, mas torna-se cada vez mais urgente e necessário.

Tradução: Virgínia Carvalho
Revisão: Miguel Antunes

Referência

MBEMBE, A. Achille Mbembe: “Cuando el poder brutaliza el cuerpo, la resistência assume una forma visceral”. Entrevista concedida a Pablo Lapuente Tiana e Amarela Varela. El diário, junho, 2016. Disponível em: https://www.eldiario.es/interferencias/achille-mbembe-brutaliza-resistencia-visceral_132_3941963.html. Acesso em: 20 fev. 2024.

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