Sublimação e final de análise

 

Laura Rubião

 

A sublimação e os truques do Belo

Em 1905 Freud utiliza pela primeira vez o termo “sublimação” e o define como uma “mistura, em todas as proporções, de eficiência, perversão e neurose”.[1] O interessante nessa definição é o caráter misto da operação que mantém lado a lado a exigência restritiva da civilização e a impureza da satisfação pulsional. Não é por ser um destino que exige um desvio quanto ao alvo da pulsão que a sublimação deixa de conservar elementos genuínos da satisfação autoerótica, em si mesma sem sentido e desenlaçada do Outro.

No texto Escritores criativos e devaneio, Freud observa que o artista, ao contrário do neurótico, faz circular os produtos de sua fantasia e suborna o público com sua arte.[2] Esse termo “suborno”[3] é sugestivo, pois nos faz pensar na possibilidade de inventar um laço para o que, em outras circunstâncias, apenas provocaria tédio ou repugnância.

Para que haja esse suborno (algo da ordem de um artifício que força uma passagem), é preciso que haja captura pela vertente do belo que, como definiu Lacan, é a última barreira a se franquear para atingir o Real. No Seminário 7 ele define a sublimação como uma elevação que visa um ponto de maior dignidade: “elevar o objeto à dignidade da Coisa”.[4]

Marie-Hélène Brousse argumenta que, na época do Outro que não existe, essa barreira do belo não opera enquanto tal, e o que surge no primeiro plano é o objeto a desprovido de qualquer véu.[5] De fato, a arte contemporânea dispensa os efeitos da unidade e da boa forma, sempre calcados no Ideal. Não há mais nada a esconder como na anamorfose dos Embaixadores, de Holbein, e tudo se mostra de uma maneira mais crua ou mesmo cruel.

Se o Outro não existe, torna-se derrisório suborná-lo ou tapeá-lo seja com os efeitos do sentido, da bela forma, seja com os efeitos do jogo de velar/desvelar. Resta ao artista transmitir, com esse objeto desvelado, um modo de satisfação, que poderá ser também um nome, uma marca do ser.[6] A obra de Joyce produz esse efeito de desvelamento, na medida em que abdica dos signos tradicionais contidos no romance: o personagem, a narrativa temporalmente bem organizada, a trama, etc. A marca transmitida por essa obra foi o que Lacan reconheceu como o próprio ego de Joyce.

Miller retoma o problema da sublimação em seu texto A salvação pelos dejetos e o considera como um dos efeitos paradoxais da experiência analítica:

O que os salva – o que os salva mesmo assim – é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso. De ter tido êxito em sublimar o suficiente sua degradação para elevá-la à dignidade de uma prática, ou seja, de um objeto de troca.[7] 

O final de análise coloca o que resta como degradação sintomática a serviço de um regime de circulação e de troca. Isso se dá, porém, de modo mais facilitado, dispensando-se as manobras acrobáticas das quais Lacan teria lançado mão em seu Seminário 7 para apontar o acesso abissal ao domínio da coisa. A operação de elevação do objeto à dignidade da coisa exigiria, naquele momento do ensino lacaniano, movimentos heroicos e sofisticados para atingir uma zona de difícil acesso, um território insondável, detentor do real do gozo.[8]

O último ensino de Lacan avançou no sentido de tornar esse ponto de real do gozo mais acessível, menos atrelado, portanto, às barreiras fantasmáticas que os modos de vida atuais ajudaram a desconstruir:

O que a análise mostra, se é que mostra alguma coisa [...] é precisamente isto, não se transgride nada. Entrar de fininho (se faufiler) não é transgredir. Ver uma porta entreaberta, não é transpô-la. [...] não se trata aqui de transgressão, mas antes de irrupção, queda no campo de algo que é da ordem do gozo – um bônus.[9]

Se, na era do fim do Belo, do fim da História, do fim do Romance, etc., ainda é possível utilizar o termo “sublimação”, temos que fazê-lo de uma nova maneira, a partir de outra perspectiva. Frente ao desgaste das barreiras que serviriam como um ponto de báscula entre o núcleo acéfalo da pulsão e as coordenadas da cultura, como conservar ainda a estratégia sublimatória? Muitas das performances no contexto da arte contemporânea atestam esse desgaste e o modo fluido, quase impermeável, pelo qual podemos transitar entre domínios que antes se deixavam tocar apenas de forma bastante indireta ou enviesada.

O escabelo e o saber-fazer com o sinthoma

O último congresso da AMP lançou o debate sobre a o termo “escabelo”, empregada por Lacan para cernir a relação de Joyce com sua obra e o laço possível de se estabelecer aí, pela via de um saber fazer com o sinthoma.

Joyce pôde se tornar um paradigma para o pensamento da clínica lacaniana na medida em que conseguiu, mesmo prescindindo da experiência analítica propriamente dita, resgatar algo do ser a partir de um ponto de estranheza radical e promover, ainda assim, sua elevação. Se há um elemento narcísico a ser conservado nessa operação, uma vez que as marcas sintomáticas do eu são propagadas ou relançadas em um laço possível, isso se dá a partir de uma nova concepção do narcisismo, tal como sugerido por Miller.[10]

Um narcisismo sem o espelho do Outro é capaz de conservar o elemento sublimatório da elevação sem, no entanto, se apoiar em um modelo externo de conformidade da imagem – tal como fizeram Joyce e Duchamp, ao introduzir o expectador/leitor em uma dimensão de surpresa, ao mesmo tempo desconfortável e extasiante. Esse terreno baldio por excelência, que em princípio não convida ao laço social, acaba por capturar o Outro, sem os truques tradicionais da imagem e do símbolo, ou seja, sem nenhum recurso ao Ideal.

O ensino de Lacan se renovou em esforços de formalização da experiência analítica no que diz respeito ao momento de conclusão da análise e da passagem de analisante a analista. O dispositivo do passe vem se renovando também no sentido de recolocar a pergunta sobre o que restaria do falasser sem a acomodação da fantasia a ser atravessada e, ainda, no sentido de inventar novas respostas para a questão de como se virar com o sinthoma.

Alguns testemunhos apontam para uma experiência de desamparo angustiante no percurso da análise – muitas vezes nomeada como experiência do deserto – que parece surgir como um efeito da travessia da fantasia. Esse deserto pode se dar sob a forma do silêncio, do vazio ou de uma deflação narcísica com tonalidades depressivas. É preciso, então, contar com um novo acontecimento, uma nova volta para que o final possa ser enunciado. Em alguns relatos, esse movimento conclusivo acena “rumo a um significante novo” portador de um bônus de satisfação ou de um prêmio de estímulo, tal como formulado por Freud em relação aos produtos do chiste ou da arte.

O escabelo pode, então, ser acionado a partir de um novo uso da língua que produz o equívoco, mas que não explora o sentido, uma vez que já não se apela tanto para os possíveis achados do tesouro do significante. O sintoma não mais sendo considerado em sua vertente de decifração, subsiste como resíduo ou dejeto do ser, e é a partir de sua faceta indigna que o analista, mesmo assim, se eleva.

Laurent comenta alguns fragmentos de passe, apontando-nos essa experiência do final como a possibilidade de “falar lalíngua dos equívocos”.[11]

O testemunho de Sonia Chiriaco[12] aponta nessa direção. Filha de uma mãe deprimida e de um pai erudito, sofisticado e irônico, ela afirma ter crescido em um estado de incompreensão e de fuga, como se só pudesse ser desejada estando desaparecida. A análise pôde explorar o imbróglio edípico concentrado no segredo da duplicidade de seu nome Sonia Dominique, o primeiro uma homenagem a uma suposta amante do pai. Um nome escondido atrás do nome, uma mulher perdida e desejada, uma trama que fazia dela uma “mentira ambulante”, como interpretou o analista. Sobrevém o desamparo e o sonho da extração da última palavra – ormeaux (abalones), que se desdobra por assonância em duas outras: ormot (palavra de ouro) e horsmots (fora da palavra). Ela, que sempre se dedicara à escrita de modo grave e culto para dar uma resposta aos enigmas debochados do pai, haveria de conceder com a besteira de lalíngua que faz da palavra de ouro um fora da palavra e abre um caminho em direção ao real da língua, que toca o sentido opaco do sinthoma. O objeto precioso que deveria ser extraído de sua cabeça se revela um nada fora do sentido, e o sujeito passa a ter uma relação mais livre e venturosa com a escrita. Já não mais se escreve a partir da pergunta lançada pela fantasia que convoca o sujeito na posição de intérprete da perversão paterna − desse pai gozador, que deixara uma mancha secreta em seu nome e que gozava com as palavras enigmáticas. Conceder com esse real verificado no gozo de lalíngua seria um modo de ir além do pai, acolhendo seus efeitos sintomáticos?

Laura Rubião é psicanalista da EBP-AMP. É doutora em estudos literários pela FALE-UFMG e autora de A ética do bem-dizer nos estudos lacanianos sobre a comédia (Ed. UFMG, 2015).

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Notas

[1] FREUD, (1905) 1972, 1988, p. 246.

[2] FREUD, (1908) 1972, p. 158.

[3] A palavra em alemão é besticht, do verbo bestechen, que significa subornar, corromper. Bestechung é corrupção.

[4] LACAN, (1959-1960) 1997, p. 133.

[5] BROUSSE, 2009, p. 202.

[6] BROUSSE, 2009, p. 205.

[7] MILLER, 2010, p. 23.

[8] MILLER, 2012, p. 14.

[9] LACAN, (1959-1960) 1997, p. 19.

[10] MILLER, 2016, p. 27.

[11] LAURENT, 2011, p. 57.

[12] CHIRIACO, 2012, p. 91-95.

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Referências

BROUSSE, M. H. L’objet d’art à l’époque de la fin du beau. Revue da la Cause Freudienne, Paris, n. 71, jun. 2009.

CHIRIACO, S. Retorno no real. Opção Lacaniana, São Paulo: Eolia, n. 60, dez. 2012.

FREUD, S. Escritores criativos e devaneio (1908 [1907]). In: ______. “Gradiva” de Jensen e outros trabalhos (1906-1908). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 135-143. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 9).

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: I - As aberrações sexuais (1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 196-217. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).

LACAN, J. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Ari Roitman; consultoria de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. (Campo Freudiano no Brasil).

LAURENT, É. O passe entre as línguas ou “Dire Babel”. Opção Lacaniana, São Paulo: Eolia, n. 60, set. 2011.

MILLER, J.-A. A salvação pelos dejetos. Revista Correio, São Paulo, EBP, n. 67, 2010.

MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. Scilicet, O corpo falante, São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016.

MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online, São Paulo: n. 7, mar. 2012. Disponível em: <http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf>.

 

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