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logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-2637

 

Testemunhos esporádicos do não-todo

 

Heloísa Bedê
Psicanalista
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Um continente, por definição, só se apresenta aos olhos uma vez desenhado pelo horizonte assintótico do mar. É tal especificidade que talvez permita a quem o tome como metáfora pelo menos duas direções de leitura bastante distintas. A primeira consistiria em lê-lo à distância, de modo que as águas tracem ali uma linha, delimitando um conjunto fechado, turvo e longínquo. A segunda direção seria a de tomar o continente no que há nele de vivo e de indelimitável, uma vez que é bordejado apenas na dimensão fugaz de seu encontro com as águas do oceano. Trata-se, pois, da proximidade ou distância com que se implica o corpo nessa operação, afinal, é na beira da água, e não à distância (já que, visto de longe, o litoral aparenta ser sempre o mesmo), que “o encontro entre água e areia produz diversas áreas de ativa indefinição” (Vieira, 2013, p. 71). É preciso corpo para que se leia, no que se desenha de um continente, um litoral.

Sabemos que, no campo psicanalítico, o continente tornou-se um dos nomes do feminino a partir da metáfora freudiana relativa ao dark continent. Os destinos dessa metáfora, contudo, articulam-se ao tratamento lógico que conferimos a ela. No campo das neuroses, por exemplo, não é incomum que os seres falantes tentem abordar o feminino a partir de uma lógica fronteiriça, ensaiando, com seus corpos e sintomas, uma distância segura contra as manifestações desse gozo que irrompe no corpo enquanto alteridade radical. A esse respeito, contudo, a prática clínica fez e faz cair insistentemente qualquer didatismo a que se pretenda, ensinando que qualquer artifício de composição de um conjunto fechado, de composição do Mesmo atrelada a um Universal, tal como propõe a lógica masculina das fórmulas sexuadas, traz consigo a ameaça de um Outro gozo que, ainda que também se produza no corpo, não é experimentado “como próprio, como possessão, mas como uma exterioridade que não faz todo” (FUENTES, 2012, p. 144). Assim, como pude escutar certa vez: “É isso, tem horas que o limite me escapa. Tem vez que é um desespero, um rombo sem fundo. Tem vez que é uma delícia. Fato é que, do nada, é sobre o corpo. Ali não tem dentro e fora, não sou homem nem mulher. Assusta... É pura experiência-borrão”.

Isto é, há algo do feminino que, quando tomado para além do campo dos significantes e dos atributos, faz vacilar o suposto conforto didático empreitado pela lógica masculina. Assim, tomar o feminino como continente segundo essa lógica talvez seja, justamente, recair no dito didatismo, metaforizando uma fronteira contra o feminino, pela via da imaginarização desse gozo enquanto um pedaço maciço e desconhecido de terras distantes do alcance da vista. Operação que facilitaria, no campo teórico, circunscrever o feminino ao campo da feminilidade (registro aliado aos semblantes, aos atributos de gênero culturalmente articulados às mulheres), por exemplo, articulando-o à condição de um enigma (HOLK, 2012) que seria guardado pelas mulheres. Entretanto, “o problema é que o feminino não tem fronteiras” (BASSOLS, 2017, p. 13).

Logo, se tomamos o continente enquanto uma operação fronteiriça, recaímos na lógica segregativa do dentro-fora, bom-mau, nativo-estrangeiro, que cola feminino e feminilidade e os relega ao estatuto de algo a ser desconhecido. Contudo, com as formulações lacanianas da década de 1970 – em especial a partir da lógica da sexuação, que produziu “um corte radical com a concepção dominante e trivial do universal” (SANTIAGO, 2012, p. 18) –, abre-se uma outra maneira de ler o continente enquanto um dos nomes do feminino. Trata-se de uma via em que Freud talvez tenha esbarrado, mas era preciso ir mais além do Édipo e da castração, como localizou Lacan, para se avançar ali. Ao propor que, da relação de um ser falante com o feminino, teríamos apenas “testemunhos esporádicos”, Lacan (1972-73/2008, p. 87) conjuga, ao continente, o contingente.

Ao formular os destinos do complexo de castração na constituição psíquica, Freud (1925/2020) recolhe de sua clínica uma oposição entre o medo de perder o falo do lado dos homens (uma vez que eles creem que o têm) e o desejo de ter o falo do lado das mulheres (uma vez que elas creem que não o têm). A releitura lacaniana de tal problemática traz à luz uma concepção simbólica da castração, tomando-a enquanto uma operação de linguagem e, assim, deslocando a questão do eixo imaginário da anatomia para distintas posições de gozo diante da função fálica, sendo o feminino não mais tomado como falta, e sim como um gozo suplementar ao falo.

É essa nova grafia do feminino que permite à psicanálise ir além da tradicional leitura do binário fálico-castrado, uma vez que parte de uma mesma função, a função fálica, para dois funcionamentos lógicos distintos, relativos a dois modos de gozo (fálico e não-todo fálico) que, por sua vez, tampouco são exclusivos de machos ou de fêmeas. Assim, Lacan (1972-73/2008), ao identificar “homem” e “mulher” menos como binômios e mais a partir de modalidades de gozo, se desloca do comum equívoco de se circunscrever o Universo masculino e, disso, deduzir o feminino enquanto seu exato oposto.

Tal giro é proposto por Lacan tendo em vista o que a clínica das neuroses ensina sobre o modo em que cada um irá aparelhar seu corpo para o gozo. O gozo fálico permite crer na possibilidade de um acesso ao corpo do Outro por dele lhe recortar o objeto que condensa seu roteiro autoerótico de satisfação, mas, afinal, goza-se, ali, apenas de sua própria fantasia. O gozo não-todo fálico, por sua vez, faz de um ser falante Outro para si mesmo, na medida em que se produz no corpo, mas “esse corpo não faz Todo, não tem unidade, o que manifesta que é o próprio corpo feminino que, no gozo, é outrificado” (LACAN, 1972-73/2008, p. 93). Se não há um ponto fora-do-corpo para se localizar o gozo, como é o caso dos “homens” sexuados, restam os efeitos de ilimitação, “prescritos pelo Não-Todo” (MILLER, 2015, p. 93).

A alteridade-heteridade do feminino, portanto, encontra-se reiterada em duas dimensões: trata-se de um gozo Outro em relação ao gozo fálico e um gozo Outro em sua própria experimentação, na medida em que faz do ser falante Outro para si mesmo. Logo, com a sexuação, temos o feminino enquanto um gozo que não pode ser territorializado, restando refratário ao binarismo implicado na lógica fronteiriça. Afinal, o não-todo lacaniano “não é inteiramente feito para instalar uma reserva, uma fronteira, um limite” (MILLER, 2016, p. 3), ele não supõe mediação; ele supõe litoral (VIEIRA, 2020).

Fundado em um conjunto aberto, o feminino se dá por meio de testemunhos marcados pela contingência, apenas localizáveis em sua dimensão de encontro com o corpo. É quando o impossível acontece, então, que se tem manifesta a conjugação implicada pelo gozo não-todo, aquela entre a ancoragem fálica do ser falante e seus esbarrões com o Outro enquanto ausência – isto é, esbarrões com um gozo que acontece no corpo e que não encontra um significante no Outro para descrevê-lo. Dessa articulação insensata entre gozo, língua e amor, eis o que a clínica psicanalítica nos ensina: “onde o discurso não diz, testemunha” (MACEDO, 2010, p. 3). Retomar o feminino a partir da noção de testemunhos esporádicos do não-todo, assim, permite-nos passar do continente-fronteira ao continente-contingente, em um giro que desimaginariza a opacidade articulada ao campo da feminilidade, uma vez que a transpõe a uma modalidade de satisfação que dirá de uma “não-coincidência entre um sujeito e o gozo bruto e real que o habita” (LEBOVITS-QUENEHEN, 2022).

Que o não-todo seja experimentado por meio de “testemunhos esporádicos” (LACAN, 1972-73/2008, p. 87), trata-se, portanto, da impossibilidade de um ser falante se instalar ali, do lado “mulher”, sendo suas eventuais visitas (BROUSSE, 2020) ao lado não-todo fálico da sexuação nada mais do que efeitos de uma pulsação, de um lampejo, de uma irrupção: “Um acontecimento no meu corpo, sem precedentes. Durou por um momento” (BROUSSE, 2020, p. 230). Destaca-se, então, que o não-todo, independentemente de suas manifestações, por não se dar de forma permanente, não se presta a um modo de ser; ele não confere consistência identificatória para que o ser falante possa ali permanecer.

Trata-se de esbarrões com os limites da linguagem, com o significante do Outro “na medida em que, como Outro, ele só pode continuar sendo sempre Outro” (LACAN, 1972-73/2008, p. 87). Tais experiências a-gramaticais, portanto, fazem de qualquer predicação puro esforço elocubratório. O feminino, na radicalidade das formulações lacanianas, então, vem nomear o que da clínica se apresenta insistentemente como “insensato”, “inlocalizável” e “indecidível” (JULLIEN, 2021, p. 40), isto é, como um gozo avesso à lógica dos atributos e predicados. É o que nos transmite o seguinte fragmento: “Às vezes percebo que aconteci. Basta um deslize, me deslumbro com uma voz, um toque, um algo e aí já foi. O corpo derrete e sai transbordando, transbordado por aí”. Entretanto, que não haja ali um modo de ser, isso não quer dizer que algo não possa se produzir nesse espaço.

Com Naveau (2017), poderíamos nomear isso que se produz no feminino com um termo subjacente à maneira lacaniana de definir a contingência: a marca. Portanto, o esporádico nomearia a possibilidade não prevista do encontro de um ser falante com esse gozo que o descompleta e que, ao cessar de não se escrever, deixa “uma marca que se inscreve produzindo um acontecimento de corpo” (FUENTES, 2012, p. 126). Logo, trata-se de fazer, por um instante, o impossível acontecer – e a isso que acontece chamamos encontro –, de modo que “alguma coisa que não se escreve vem, no instante do encontro, se escrever” (NAVEAU, 2017, p. 102). Eis de que se trata a contingência: “alguma coisa que foi encontrada e que poderia ter sido de outra maneira, enquanto nesse nível só pôde ser assim” (MILLER, 2015, p. 55).

É paralelamente ao desenvolvimento das fórmulas da sexuação, também no início da década de 1970, que Lacan (1971/2003) introduzirá ao campo psicanalítico a noção de litoral, a qual renova a instância da letra em seu ensino e inclui um interessante paradoxo: o da conciliação impossível da radical heterogeneidade de seus elementos (como água e terra) e a impossibilidade de se delimitar um e outro (onde a água começa e a terra termina, por exemplo). Assim, se temos, na fronteira, um esforço falhado de delimitar e separar territórios, no litoral temos elementos distintos que se fazem fronteira por sua própria heterogeneidade, mas cujo limite é impossível de ser traçado. De um lado impotência, do outro, impossibilidade.

A lógica litorânea, portanto, implica um fazer entre, entre dois registros heterogêneos, entre dois territórios estrangeiros. Assim, tal como no litoral, cujo traço distintivo é a conjugação fugaz entre a heterogeneidade de seus elementos e a impossibilidade de se delimitar um e outro, o feminino encontra seu impossível de delimitar por estar sempre em movimento, em seus avanços e seus recuos sobre o Universo fálico, que lhe impedem de assumir uma forma estabelecida, transponível a um conjunto fechado. No lugar da linha erigida pelo continente-fronteira, vemos, aqui, uma linha indelimitável, tecida apenas no encontro das terras continentais com a água, pura conjugação.

Nessa direção de leitura, o continente enquanto metáfora para o feminino, uma vez lido a partir do contingente, permite um uso que não recai na lógica fronteiriça e, ainda, que implica o corpo ao reiterar que só há feminino no encontro. Não se trata, portanto, de predicar o continente, mas, sim, daquilo que, no continente, faz litoral; incluindo o corpo naquilo que não é fixo, mas que faz marca. Assim, qualquer que seja o nome a lhe ser dado, ao lidar com essa Outra satisfação, o sujeito pode cair na dimensão oceânica a que convida a devastação, bem como pode tentar operar, a partir de sua fantasia, uma fronteira contra essa satisfação, ou pode, ainda, sustentar o não-todo como solução (nem toda fálica, nem toda não-fálica); uma saída a ser sempre (re)construída, pois ela só é possível se se consente com os avanços e recuos contingentes desse gozo sobre o corpo. A esta última direção, litorânea, poderíamos talvez chamar-lhe a aposta de uma análise. 

Referências

BASSOLS, M. O feminino, entre centro e ausência. Opção Lacaniana Online, n. 23, p. 1-15, 2017. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/O_feminino_entre_centro_e_ausencia.pdf. Acesso em: 20 fev. 2024.

BROUSSE, M.-H. Lo femenino. Buenos Aires: Tres Haches, 2020.

FREUD, S. Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud: Amor, sexualidade, feminilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 259-276. (Trabalho original publicado em 1925).

FUENTES, M. J. S. As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. Belo Horizonte: Scriptum, 2012.

HOLK, A. L. L. As mulheres não contam. In: CALDAS, H.; MURTA, A.; MURTA (orgs.). O feminino que acontece no corpo: a prática da psicanálise nos confins do simbólico. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, p. 241-248.

JULLIEN, B. O amor da língua. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 85, p. 37-43, 2021.

LACAN, J. Lituraterra. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 11-25. (Trabalho original publicado em 1971).

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1972-73).

LEBOVITS-QUENEHEN, A. Si la femme n’existe pas, les hommes sont-ils des femmes comme les autres? In: Grandes Assises Virtuelles Internationales de l’AMP 2022. 2022. Disponível em: https://www.grandesassisesamp2022.com/si-la-femme-nexiste-pas-les-hommes-sont-ils-des-femmes-comme-les-autres/. Acesso em: 20 fev. 2024.

MACEDO, L. F. de Lacan, “o relâmpago obscuro”. Opção Lacaniana Online , n. 1, p. 1-15, 2010. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/Lacan_o_relampago_obscuro.pdf. Acesso em: 20 fev. 2024.

MILLER, J. -A. Uma partilha sexual. Opção Lacaniana Online, n. 20, p. 1-40, 2016. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_20/Uma_partilha_sexual.pdf. Acesso em: 20 fev. 2024.

MILLER, J. -A. O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2015.

NAVEAU, P. O que do encontro se escreve: estudos lacanianos. Belo Horizonte: EBP Editora, 2017.

SANTIAGO, J. Prefácio. In: FUENTES, M. J. S. As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012, p. 17-24.

VIEIRA, M. A. Mulher: figura impossível (ou “No litoral”). Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 65, p. 69-72, 2013.

VIEIRA, M. A. Três dimensões do litoral [ficheiro de vídeo]. 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xj29wuW0mjI. Acesso em: 20 fev. 2024.

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