Ram Mandil

 

Pretendemos levantar aqui algumas questões suscitadas a partir da pergunta que Simone Souto nos propôs no argumento da Jornada da EBP-MG, a saber: como a psicanálise tem respondido, sob transferência e também fora dela, às incidências do discurso do mestre contemporâneo. Mais especificamente, como se haver com as manifestações da pulsão que surgem desconectadas da fantasia ou sem a mediação do sintoma? Ou ainda, que posição esperar dos analistas em relação a algumas formas de violência que parecem derivar de uma satisfação da pulsão em que não é possível encontrar qualquer relação com a culpa, com a castração ou com a divisão subjetiva?

De pronto, uma pergunta: estaria ao alcance da psicanálise responder às incidências do discurso do mestre fora do âmbito da transferência?

A pulsão “fora da transferência”

A questão sobre a incidência da psicanálise diante do que parece estar fora do seu alcance é um tema que se coloca desde Freud, mas sobretudo por parte de Lacan em relação, por exemplo, à clínica das psicoses. Conhecemos a forma como Lacan estabelece o princípio da experiência analítica: “No começo da psicanálise está a transferência”, no texto “Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, (LACAN, 2003, p. 252), o que não o impede de considerar a transferência nas psicoses na perspectiva de uma “questão preliminar”.

Para aferir o alcance do tema das pulsões fora da transferência, podemos incluir em nossa investigação as relações entre a pulsão e a transferência. Sabemos que são dois dos conceitos fundamentais da psicanálise privilegiados por Lacan em seu Seminário 11. E será através de um terceiro conceito fundamental, a repetição, que podemos fazer uma primeira articulação entre pulsão e transferência. Numa passagem de “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, texto que antecede o Seminário 11, encontramos uma referência que permite encaminhar essa relação: “(...) assim como o automatismo de repetição (...) não visa outra coisa senão a temporalidade historicizante da experiência da transferência, o instinto de morte expressa essencialmente o limite da função histórica do sujeito.” (LACAN, 1998, p. 319).

Nesse sentido, a pulsão em seu circuito de repetição participa da experiência da transferência ao conferir-lhe a configuração de uma “temporalidade historicizante”. Historicidade a ser entendida aqui como o que se expressa como força de destino, “no que essa história tem de acabado”, ou seja, a história como o que representa o passado não como passado físico, épico ou histórico, mas “sob a sua forma real (...) que se manifesta revertido na repetição.” (LACAN, 1998, p. 319)

Devemos levar em conta também que o convite para considerar a pulsão “fora da transferência” aponta para um mais além das qualificações da transferência, seja como positiva ou negativa. Outra questão surge daí: aquilo que na experiência nos dá a impressão de estar fora do alcance da transferência não poderia ser novos modos de manifestação da transferência, por exemplo, para além de uma relação com o saber?

Podemos dizer que no mundo atual há cada vez menos lugar para uma relação ao saber sob a forma da suposição. E é justamente na vertente de uma suposição de saber que Lacan localiza o lugar do analista na transferência. No entanto, os laços sociais contemporâneos tendem a se constituir sob a forma de uma “sociedade da suspeita”, como Jacques-Alain Miller (2010) a designa, em que se assiste a uma crescente intolerância em relação aos saberes supostos:

Ela [a sociedade da suspeita] se anima a partir de um outro imperativo que é o de explicitar tudo, expor tudo, exibir tudo (...) identificando-o com a ciência. Supõe-se, e este é o termo, que é este saber exposto que confere o estatuto de ciência, um saber capaz de prestar contas de si mesmo e de seus próprios fundamentos, um saber que se autoverifica, se assim posso dizer. (MILLER, 2010, p. 75. Tradução nossa.)

Miller indica que esse modo de conceber o saber científico “é evidentemente uma concepção reduzida e errônea do que é o discurso e a história da ciência, que é complexa, ao ritmo das mudanças de paradigmas, susceptível a paradigmas múltiplos (...)” (MILLER, 2010, p. 75. Tradução nossa.).

Essa concepção reducionista da ciência cristaliza-se hoje na noção de práticas “baseadas em evidências”, como se o saber pudesse ser inteiramente transparente a si mesmo e liberado de tudo aquilo que deixa margem para o incerto ou para o indeterminado. De toda forma, as mudanças em curso na atualidade não deixam de suscitar a atenção do analista em relação a seus efeitos sobre a transferência.

Uma elaboração nesse sentido pode ser encontrada, por exemplo, na Convenção de Antibes, em torno da noção das “psicoses ordinárias”. Através de uma investigação a respeito da clínica contemporânea das psicoses e sobre o que poderiam ser as “neotransferências”, Miller propõe considerar o analista na condição de “parceiro sintoma”, o que, de certa forma, desloca a questão de tomá-lo inteiramente na vertente do sujeito suposto saber.

Seguindo a perspectiva de uma investigação sobre a atualidade da transferência, podemos acompanhar as elaborações de Éric Laurent (2018), em recente apresentação no Congresso da AMP, a respeito do uso que podemos fazer da transferência numa era de declínio do Nome-do-Pai, mas também sem o Outro: “(...) é preciso ir além no entendimento da ruptura do analista com sua ancoragem na suposição. Ele não está no lugar do sujeito suposto saber, ele está no lugar daquele que segue.”

Acompanhando as elaborações de Laurent nesse texto, indica-se o que poderia ser uma “nova versão da transferência positiva”, na qual “uma transformação por acréscimo de significação” pode permitir

um novo uso do parceiro de gozo para ultrapassar os bloqueios da Inadvertência [Une-bévue, um modo lacaniano de referir-se ao inconsciente] do sujeito confrontado com lalingua e com sua instabilidade, com seus deslizamentos permanentes. (LAURENT, 2018, s/p.)

 

Narcisismos

Nas considerações sobre as relações entre a pulsão e a transferência, cabe assinalar a dimensão narcísica que aí se manifesta.

Podemos retomar aqui o modo como Freud apresenta os quatro destinos da pulsão: a pulsão que sofre o efeito do recalque e que, a partir daí, encontra um modo de satisfação substitutiva através do sintoma; a pulsão que encontraria um modo de satisfação através da sublimação, como modo de recuperação do que teria sido cedido através do recalque; e dois outros modos que apontam para a reversibilidade da pulsão – o retorno sobre o eu e a mudança de atividade para a passividade. Sem entrar aqui no mérito dessas duas reversões – problematizadas por Lacan –, chama a atenção o fato de que esses dois últimos destinos pulsionais são, para Freud (ano), “dependentes da organização narcísica do eu” e corresponderiam, é a sua hipótese, “às tentativas de defesa que são realizadas com outros meios em etapas superiores do desenvolvimento do eu”. Importante destacar aqui, a meu ver, é que a satisfação narcísica é também tributária de uma defesa acionada em relação às exigências de satisfação pulsional. A reversão da pulsão para o próprio eu e a passagem da atividade para a passividade seriam modos de satisfação próprios ao narcisismo, pelas vias de um “amar a si próprio” e de preponderância da demanda de “ser amado”. (FREUD, ano)

A relação entre o narcisismo e a transferência é retomada por Lacan em passagem do Seminário 11, ao comentar sobre o amor como efeito de transferência: “É claro que, como todo amor, ele só é referenciável, como Freud nos indica, no campo do narcisismo. Amar é essencialmente, querer ser amado”. (LACAN, 1985, p. 239)

A referência à dimensão narcísica da transferência nos permite acompanhar as declinações do narcisismo que encontramos em Freud, Lacan e mais recentemente em Miller. Talvez a mais célebre declinação do narcisismo seja aquela que Freud designou, em O mal-estar na civilização (1930), como o “narcisismo das pequenas diferenças”, em relação ao fato de “comunidades vizinhas, e também próximas em outros aspectos, andarem às turras e zombarem uma da outra”. Nesse caso, o narcisismo é a expressão “de uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual é facilitada a coesão entre os membros da comunidade”. (FREUD, 1930/2010, p. 81). A satisfação narcísica é aqui reconhecida como força erótica de uma comunidade, apresentada, portanto, em sua dimensão coletiva.

Lacan introduz uma segunda declinação do narcisismo em “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” – o “narcisismo da causa perdida”, situada em relação a uma suposta demanda de castração do Outro: “O que o neurótico não quer, o que ele recusa encarniçadamente até o fim da análise, é sacrificar a sua castração (...) ao gozo do Outro, deixando-o servir-se dela (...) Pois imagina que o Outro demanda a sua castração.” (LACAN, 1998, p. 841)

Mas quando essa demanda é interpretada como uma vontade de gozo do Outro, resta ao sujeito se realizar

... como objeto, de se tornar a múmia de uma certa iniciação budista, ou de satisfazer a vontade de castração inscrita no Outro, o que leva ao supremo narcisismo da Causa perdida (essa é a via da tragédia grega, reencontrada por Claudel num cristianismo desesperado). (LACAN, 1998, p. 841)

Miller comenta sobre esse modo de satisfação da pulsão, o narcisismo da causa perdida, ao reconhecê-lo, por exemplo, nos argumentos de certos partidos da esquerda francesa ao se recusarem a aliar-se a uma frente contra a ameaça de vitória da extrema-direita nas últimas eleições presidenciais da França. Trata-se, a seu ver, de uma satisfação que procura assumir uma posição “nobre”, mesmo sob a ameaça de uma derrota que teria efeitos catastróficos, posição que poderia ser resumida desta maneira: “Serei fiel às minhas convicções, mesmo ao preço de uma derrota”. (Miller, 2017a. Tradução nossa.)**

Essa postura, como Lacan indica, pode ser reconhecida em muitos heróis da tragédia grega como uma abertura, como o designa Jean-Claude Maleval (2017), seguindo a linha dos comentários de Miller, “para um além da fantasia, onde se desvela ‘a vontade de castração inscrita no Outro´” (Tradução nossa). Maleval prossegue: “Porque é um narcisismo supremo? Porque este ato, segundo J.-A. Miller, é correlativo de um ‘tudo já está perdido de antemão’, de um desastre no mundo, que incita a um desinvestimento e a concentrar toda a libido sobre o eu.” Resta, portanto, apenas a “inflexibilidade que deve provocar admiração”.

Miller introduz uma terceira declinação do narcisismo que interessa de perto ao eixo de nossa Jornada, que é o “narcisismo da causa triunfante”, um narcisismo derivado de um sentir-se amado por ser vencedor e por ter conseguido derrotar, aniquilar o inimigo. Trata-se de um narcisismo derivado de uma admiração por haver triunfado em relação ao adversário.

Em seu texto “Em direção à adolescência”, Miller (2015) estabelece um contraste entre essa forma de narcisismo e aquela da causa perdida, estabelecendo a diferença entre a celebração do triunfo por parte do radicalismo islâmico e aquele derivado da posição cristã, ambos inscritos no âmbito do discurso do mestre. No caso do narcisismo da causa triunfante, o sujeito se vê identificado ao lugar de agente da vontade de morte (e não de castração) inscrita no Outro, colocando-se a serviço da pulsão de morte do Outro: “No cristianismo, o processo é supostamente conduzir à castração do próprio sujeito (...) Eu me mortifico, eu me privo, eu me castro e eu sou grande porque sou devotado à causa perdida.” (MILLER, 2015, s/p.)

Nada disso é reconhecível no narcisismo da causa triunfante, uma vez que aí não haveria qualquer fascinação pela causa perdida, nenhuma relação com a castração, uma vez que “ela está ligada a um real do gozo” que não se desfaz por nenhuma medida que vise modificar essa posição a partir dos semblantes. (MILLER, 2015, s/p.)

Se podemos reconhecer esse modo de satisfação da pulsão que é o narcisismo da causa triunfante nos extremismos religiosos, podemos dizer que ele também atravessa os conflitos sociais contemporâneos, em que se visa ao triunfo sobre os adversários como modo de satisfação da pulsão de morte. Por exemplo, como não enxergar esse narcisismo da causa triunfante nas brigas cada dia mais violentas entre torcidas de futebol, e mesmo no interior de uma mesma torcida; ou ainda na polarização política da sociedade sob o domínio cada vez mais crescente da pulsão de destruição em sua vertente triunfante?

 

Pulsão de morte e violência

Como lidar com as manifestações da pulsão de morte quando elas tendem a prevalecer na civilização ou no interior de uma comunidade humana, sobretudo quando essas manifestações tendem a se exprimir sob a forma de violência?

Sobre esse ponto, vale a pena retomar as referências de Miller (2017b) em seu texto “Crianças violentas”. Ele o abre perguntando se a violência (no caso, a violência na criança) pode ser considerada um sintoma e, em seguida, apresenta uma série de teses que vale a pena ser discutida. Mais proximamente ao nosso tema, ele retoma a discussão sobre a relação entre a violência e a sua possível causa, situando a questão nos seguintes termos:

Há uma violência sem porque, que tem nela mesma sua própria razão, que é ela mesma um gozo. É apenas num segundo momento que iremos buscar o que a determina, sua causa, o mais-gozar que é causa do desejo de destruir, de ativação deste desejo. [E conclui:] em regra geral [encontramos essa causa] numa falha no processo de recalque ou, em termos edipianos, [em] algo que se rompeu da metáfora paterna. (MILLER, 2017b, p. 28)

É aqui que caberia distinguir as defesas em relação a um gozo que se expressa como “puro desejo de destruição”, ou seja, diferenciar as violências que provêm de uma falha do processo de recalque daquelas que derivam de uma falha no próprio estabelecimento da defesa.

Miller chama a atenção para um possível manejo analítico dessa violência, partindo de uma avaliação se ela estaria ou não ao alcance da fala ou mesmo do simbólico:

Lembrarei simplesmente que é preciso dar um lugar a uma violência infantil como modo de gozo, mesmo quando é uma mensagem, o que quer dizer que não devemos atacá-la de frente. Não se deve esquecer jamais que o analista não é o guardião da ordem social, que cabe a ele apenas fazer um eventual reparo a uma falha simbólica ou reordenar a defesa, mas que, nos dois casos, seu efeito só se produz lateralmente. (MILLER, 2017b, p. 30)

Estamos aqui na temática da pulsão sem transferência, ou ainda, diante das questões que se apresentam quando a pulsão de morte não recebe o impacto de uma defesa, e no caso do recalque, com a oferta de uma satisfação substitutiva através do sintoma. Como “reordenar a defesa” de um sujeito quando ele se vê inteiramente tomado pela pura satisfação da pulsão de morte?

Essa é uma questão que, de certo modo, foi lançada a Freud por Einstein e que deu origem ao libreto Por que a guerra?, publicado em suas obras completas. Deixo aqui apenas algumas indicações desse diálogo, as quais poderão ser retomadas ao longo das discussões da Jornada.

Diante da pergunta de Einstein – se existe um meio de liberar os homens da ameaça de destruição, materializada através das guerras –, a resposta de Freud se concentra sobre um ponto que para ele é central: “pretender suprimir as tendências destrutivas dos homens é uma obra inútil” (FREUD, 1933, p. 249). As considerações de Freud indicam que, além do mais, as ações humanas raramente podem ser atribuídas a uma única força pulsional, sendo muito mais frequentes as suas manifestações como um composto de Eros e de Thanatos. Por outro lado, ele faz ver que a pulsão de morte é um modo de satisfação que, em alguns casos, é experimentado como um alívio e mesmo como uma ação benéfica.

A perspectiva de Freud, portanto, não é a da supressão da pulsão de morte – o que o distingue de uma visão puramente humanista –, mas a de encontrar os meios de canalizá-la para outras vias de satisfação que não encontrem seu modo de expressão através da violência ou da guerra.

Entre esses modos de canalização da pulsão de morte – ao lado de tudo aquilo que venha a favorecer a cultura e a perpetuação da espécie humana –, Freud vislumbrava apenas uma saída possível através de uma ação política (apesar de ele não usar esse termo): “o triunfo sobre a violência só é possível através da passagem do poder [ou seja, do direito à violência] para uma unidade mais ampla, amalgamada entre seus membros por relações afetivas. Tudo mais é um comentário disso.”

Se é possível enxergar nessa observação de Freud a esperança de que o uso e o controle da violência possam ser feitos por uma “unidade mais ampla” da comunidade humana, é com Lacan que podemos mensurar os limites dessa perspectiva freudiana ao precisar as relações entre o discurso analítico e o discurso do mestre.

Em “Lacan e a política”, Miller (2003) assim condensa as relações entre o discurso do mestre e o discurso analítico tal como podemos depreender do ensino de Lacan:

Aos olhos de Lacan, a política procede pela identificação, ela manipula significantes mestres, através dos quais ela procura capturar o sujeito. Este, na verdade, só quer isso, uma vez que padece, como inconsciente, de uma falta de identidade, vazio, evanescente, precisamente como cogito, antes que o Outro divino venha lhe dar estabilidade. (...) É este o papel que o Outro cumpre, não mais divino, mas político, se quisermos, isso que Lacan chama de discurso do mestre, e no qual vê nada menos do que o avesso da psicanálise. Isso porque a psicanálise vai contra as identificações do sujeito, ela as desfaz uma por uma, as faz cair como casca de cebola. Por esta razão, ela devolve ao sujeito a sua vacuidade primordial e do mesmo modo libera a fantasia inconsciente que ordenava suas escolhas e seu destino, isolando isso que lhe dava suporte, seja ele o nome que queiramos dar: o quantum de libido, o objeto pequeno a, o condensador de gozo. Daí resulta uma possibilidade inédita para o sujeito de poder “atravessar” sua fantasia, e de fazer um novo começo. (MILLER, 2003, p. xx)

Estão aí, a meu ver, as balizas para se pensar a transferência quando liberada de uma “temporalidade historicizante”. Isso, de certo modo, estabelece um paralelo entre este eixo de nossa Jornada – a pulsão fora da transferência – e a pergunta que Lacan se faz no Seminário 11 (1985, p. 258): “Como um sujeito que atravessou a fantasia radical pode viver a pulsão?”. Sabemos que, ao final da análise, a satisfação pulsional não dispensa a transferência, mas certamente a estabelece em novos termos. Esses novos termos certamente têm algo a nos dizer sobre os impasses com os quais se deparam aqueles que vivem a pulsão fora da transferência.


Notas

* Texto apresentado no Seminário Preparatório para a XXII Jornada EBP-MG - “O inconsciente e o mestre contemporâneo: o que pode a transferência?”, em 5 de julho de 2018.

** Vale chamar a atenção para uma defesa da posição exposta por Slavoj Zizek em seu livro Em defesa das causas perdidas (Ed. Boitempo), segundo o qual haveria um “momento redentor” em cada uma das passagens da história hoje identificadas como sendo da ordem das causas perdidas. Retomando uma frase de Alain Badiou, “melhor vale um desastre do que um deserto”, Zizek julga ser preferível um desastre por fidelidade a um Evento do que um não-ser por indiferença ao Evento. No entanto, sua análise não parece levar em consideração o modo de satisfação narcísica própria a essa posição subjetiva, elevada aqui a um posicionamento político.

*** Durante a discussão do Seminário Preparatório, chamou-se a atenção para um aspecto fundamental do narcisismo em relação ao sinthoma e ao final de análise. Sérgio Laia relembra discussão de Lacan sobre o “ego de Joyce” em seu Seminário 23, retomando a importância do tema do narcisismo em relação à constituição do sinthoma e, no caso de Joyce, de um narcisismo construído sem privilegiar a relação com a imagem do próprio corpo. Dessa observação, destacamos a noção de escabelo, também introduzida naquele Seminário, como aquilo que confere uma dignidade ao sinthoma e que, para Miller, estaria situado num cruzamento entre narcisismo e sublimação. Ainda durante a discussão e também envolvendo a relação entre narcisismo e sinthoma, Márcia Rosa assinala uma passagem do Seminário 24 - L’insu que sait..., lição de 16 de novembro de 1976, em que Lacan, retomando a discussão sobre narcisismo primário e secundário em Freud, chama a atenção para um “savoir y faire” com o sinthoma ao final da análise, e que corresponderia aos modos como um homem lida com sua imagem, o que seria um modo de vislumbrar como ele se vira com o seu sinthoma. Este tema foi retomado por Éric Laurent em “Falar com seu sinthoma, falar com seu corpo”, um dos textos de referência do VI Enapol.

Referências

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