Verdade e assentimento: o impasse de Wittgenstein diante de Freud[1]

 

Frederico Feu de Carvalho

 

As observações de Lacan acerca do tratamento dado por Wittgenstein à questão da verdade, desenvolvidas na lição do dia 21 de janeiro de 1970 do Seminário 17: o avesso da psicanálise, nos ajudam a compreender o impasse do filósofo frente à novidade freudiana no contexto de recepção dessa novidade em Viena, no início do século XX. Sabemos que o primeiro contato de Wittgenstein com a obra de Freud teria ocorrido pouco depois de 1919, logo após a conclusão do Tractatus. “Eu tive um sobressalto de surpresa, teria dito Wittgenstein, ali estava alguém que tinha algo a dizer”. Pelo resto de sua vida, “[...] ele considerou Freud um dos poucos autores dignos de serem lidos” e costumava referir-se a si mesmo como um “discípulo de Freud e um seguidor de Freud” (LC, 73).[2] É ainda esse prazer da leitura de Freud que será evocado em 1951, ano de sua morte, em uma de suas últimas anotações: “Freud escreve admiravelmente e é um prazer lê-lo, embora ele não seja nunca grande em sua escritura” (VB, 87).

O contraste entre o prazer da leitura e a condenação de sua escritura sintetiza a ambiguidade característica de Wittgenstein diante de Freud. É justamente por se sentir tomado pelo prazer de sua leitura que se faz necessário, segundo Wittgenstein, o trabalho de esclarecimento filosófico, mantendo-se em suspensão o assentimento a ser dado à explicação freudiana. “Para aprender com Freud, dirá Wittgenstein, é preciso manter uma atitude crítica”; mas – aqui intervém a objeção – “a psicanálise em geral impede isto” (LC, 74). O argumento wittgensteiniano repousa, assim, sobre o paradigma da crítica vienense de Freud, ao qual ainda podemos identificar Karl Kraus e Karl Popper: a impossibilidade de entrar em contradição com o discurso psicanalítico que faz da questão do assentimento à explicação psicanalítica um impasse insolúvel.

Mas a novidade freudiana escapa a Wittgenstein, como o pássaro que se quer tomar pela cauda. De fato, não parece haver lugar para a psicanálise na partilha esboçada no Tractatus entre as proposições que podem ser sustentadas como verdadeiras e aquelas das quais não se pode afirmar se são verdadeiras ou falsas. O inconsciente produz, nesse ponto, um embaraço que compromete a intenção terapêutica da filosofia de Wittgenstein e sua vontade de esclarecimento; ele embaralha a distinção tractatiana que separa proposições da ciência, cuja verdade é assegurada pela estrutura lógica da linguagem, da existência do místico, que carrega o peso do silêncio do que não pode ser dito a partir dessa mesma estrutura. De fato, o inconsciente se apresenta para Freud, desde o início de sua investigação, como o que emerge de um fundo de silêncio, como retorno na linguagem do que é, por essência, recusado ao pensamento consciente.

Diante de seu envolvimento inicial com o texto de Freud, Wittgenstein busca atingir uma posição de exterioridade lúcida[3] que lhe permita sair desse impasse. A questão é saber se é possível, como assinalado por Freud, atingir tal posição em relação ao inconsciente. Para Freud, mantemos com o inconsciente uma relação de implicação embaraçosa, caracterizada pelo sentimento de estranheza familiar (Unheimliche). Por isso, a admissão do inconsciente requer justamente o afastamento da atividade crítica exercida pelo pensamento consciente, o que acaba, forçosamente, por incluir o analista na experiência. Tal é a lógica da análise, incompreensível para Wittgenstein. Em outras palavras, a inclusão do analista é um efeito lógico da exclusão da atividade crítica[4] para sustentar uma relação com a verdade que escapa à razão. Mas essa inclusão forçada do analista não se confunde, segundo Freud, com uma relação de persuasão.

O apelo à ciência, por parte de Freud, tão suspeito aos olhos de Wittgenstein, pode ser pensado como uma espécie de contrapeso aos impasses da transferência onde o analista está forçosamente incluído. A ciência é a única estrada capaz de conduzir a um conhecimento da realidade externa a nós mesmos, a única forma de superar a relação imaginária que se estabelece em torno da transferência. “Seria uma ilusão pensar que aquilo que a ciência não pode nos dar poderíamos encontrar em algum outro lugar”.[5] Levando em consideração a relação que Freud estabelece com a verdade, em seu sentido analítico, teríamos uma relação lógica entre três termos: (1) exclusão da atividade crítica como condição de acesso à experiência analítica e à admissão do inconsciente; (2) implicação forçada do analista na transferência para sustentar uma relação com a verdade para além do que se articula, nessa experiência na ordem das razões; (3) apelo à ciência, como alteridade necessária à crença na verdade que sustenta a posição do analista na transferência, pelo fato de que o analista deixa vazio o lugar discursivo de onde se profere essa verdade.

Lacan reconhece que Wittgenstein tem de próximo à posição do analista o fato de que ele também se elimina completamente de seu discurso.[6] Trata-se de um discurso que não fala Eu. Mas a recusa de Wittgenstein em conceder uma sobrevida à verdade para além do limite que lhe confere a lógica proposicional do Tractatus será identificada por Lacan, paradoxalmente, ao propósito de salvar a verdade, impedindo sua recaída na linguagem. Para salvar a verdade, Wittgenstein a reduz ao que pode ser dito de verdadeiro e sustentado como tal graças à adequação a uma estrutura lógica que consiste, em suma, em dizer bem o que se pode dizer segundo essa mesma estrutura. O resultado, como reconhece Wittgenstein, é tautológico, pois ao pretender separar o factício da linguagem do ato de enunciação, não resta à verdade outra subsistência senão o silêncio que ela habita, um silêncio que se poderia dizer pleno, enquanto a verdade mesma se esvazia ao ter seu valor reduzido à inscrição de uma letra, ao manejo de um símbolo, que em geral é um “V” maiúsculo, sua inicial.[7] É o propósito de salvar a verdade, forcluindo a sua falta-a-ser, que Lacan irá identificar à descrença (Unglauben) que dá ao discurso de Wittgenstein o seu traço de “ferocidade psicótica”[8] –“nada querer saber do recanto em que a verdade está em jogo”.[9]

Tal perspectiva esclarece, a posteriori, os limites da crítica wittgensteiniana de Freud. Traçar, como pretende Wittgenstein, um limite ao que se pode dizer de verdadeiro mediante a depuração da linguagem pretendida no Tractatus apenas acentua a recusa em conceber que a verdade se diz sempre pela metade, deixando antever pela fresta da porta o sonho secreto “de querer que da linguagem responda um sentido absoluto”[10] para dar conta de ordenar o campo do gozo pelo discurso. Neste sentido, a operação tractatiana acaba por reintroduz o inconsciente como uma insistência em continuar falando para além deste limite e, de certa maneira, como um efeito mesmo deste limite e resto de sua operação. “Quero dizer que só se encontra o verdadeiro fora de toda proposição”, dirá Lacan, e “[...] dizer que a verdade é inseparável dos efeitos de linguagem tomados como tais é incluir aí o inconsciente”.[11] Em outros termos, a insistência em não se calar tem parentesco com a vontade de gozo que anima nosso uso da língua e impede que se possa fazer fronteira na linguagem.

Compreende-se, dessa maneira, por que o apelo lacaniano a Saussure se faz em detrimento da lógica. A língua considerada em si mesma e por si mesma, como preconiza Saussure[12] a propósito da perspectiva que convém à linguística, implica tomar a língua sem que se estabeleça, como uma condição prévia, a divisão entre o que pode ser dito e o que não pode ser dito. “Escolher a linguística é escolher que a significação não faça fronteira na linguagem”, lembra-nos Milner.[13] Há algo na própria língua que parece fazer obstáculo à operação wittgensteiniana no Tractatus. A lógica, por sua vez, se a tomamos como ciência do real, isto é, como puro cálculo literal, terá que se afastar da questão da significação para se ater apenas à literalidade do que faz e do que não faz sentido no nosso uso da linguagem.

A questão do assentimento, que Wittgenstein dirige à explicação freudiana, poderia ser pensada, portanto, como um efeito da exclusão da falta-a-ser da verdade. Isso reduziria a psicanálise, na perspectiva wittgensteiniana, a uma relação de persuasão entre dois falantes que compartilham um jogo de linguagem. Para Lacan, no entanto, a verdade fala por si mesma, enunciando-se como pode, sem que nenhum domínio da linguagem possa referi-la, impondo-se como um terceiro termo que excede a relação de persuasão entre os seres falantes.

Crítica da explicação freudiana

Retomemos, em linhas gerais, as observações críticas que Wittgenstein dirige a Freud.[14] Elas podem ser inicialmente condensadas em torno da distinção gramatical entre causas e razões. Uma razão pode vir a ser conhecida, oferecendo-se justificativas para uma ação qualquer, na medida em que se busca ajustá-las a um modo de dizer. Ela exige, portanto, um reconhecimento possível da parte do interessado como sendo esta a expressão à qual ele dá o seu assentimento. Por outro lado, uma relação causal é o que estabelecemos por meios experimentais ou observando uma coincidência regular de processos. Nesse sentido, a causa não poderia vir a ser conhecida como uma razão, mas apenas conjecturada, acrescentando-se à sequência de eventos observada. A relação causal dispensa o assentimento. Tomemos como exemplo uma relação qualquer entre um evento A e um evento B. A diferença entre perguntar pela causa e perguntar pela razão equivaleria à diferença entre perguntar “que mecanismo levou de A até B?” e perguntar “que trajeto você percorreu de A até B?”. Para Wittgenstein, o erro de Freud consiste em atribuir um caráter causal à explicação psicanalítica, embora todo o procedimento que permeia o jogo de linguagem psicanalítico seja orientado por uma gramática das razões.

Talvez seja precipitado concluir que Wittgenstein demarque de forma rígida a fronteira entre causas e razões, refutando a pretensão científica da psicanálise e localizando, do lado das razões, o terreno onde se desenrola o jogo de linguagem psicanalítico. Mesmo porque se pode conceber, conforme sugerido por Schopenhauer, um motivo como causa suficiente de uma ação. O que Wittgenstein parece pôr em questão é mais o ponto em que Freud abandona o terreno das razões para conjecturar sobre as causas ou, mais exatamente, o ponto de passagem das razões às causas. A questão é saber até que ponto o apelo à causalidade psíquica equivaleria ou não à utilização de um recurso do qual se lança mão para fazer frente à finitude da cadeia de razões, como uma forma de burlar um limite colocado pela linguagem, espécie de pulsão freudiana para olhar além dos muros e passar ao outro lado.

Resulta daí uma série de confusões entre o objeto, cuja existência é postulada na esteira da prospecção das causas, e o paradigma, e entre enunciados de experiência e enunciados gramaticais, ou seja, entre as proposições que concernem à experiência e as proposições que concernem ao uso das palavras na linguagem, que enunciam uma regra e descrevem o quadro referencial em que a experiência pode ser descrita. Um enunciado de experiência se transforma em uma explicação quando o modo de apresentação se torna normativo, passando a se impor aos fatos; quando postulamos, por exemplo, que “todo sonho é realização de desejo”. Uma das objeções de Wittgenstein em relação aos postulados freudianos é que eles tratam “como uma coisa aquilo que se encontra no modo de apresentação” (PI: §104). Passamos então a falar do desejo ou do inconsciente de modo substantivo, como se fossem coisas, e não conceitos. Freud teria, segundo Wittgenstein, feito um uso abusivo de um paradigma (Urbild), apresentando-o não pelo que é, simples objeto de comparação (Vergleichsobjekt), mas como um modelo valendo para o exame de todos os casos, como uma chave mestra capaz de abrir todas as portas, mesmo onde o exame dos fatos parece contradizê-lo.

A crítica de Wittgenstein se torna mais clara se a aplicamos à interpretação freudiana dos sonhos. Para Wittgenstein, essa interpretação acaba por se confundir com a aplicação de uma regra de interpretação e exige do sonho que ele se adapte a uma moldura, a uma imagem completa, como na analogia freudiana com o puzzle:

[...] uma figura colorida, colada sobre uma chapa de madeira e ajustada a uma moldura foi recortada em numerosos pedaços de formatos irregulares. Se se consegue ordenar este confuso amontoado de fragmentos, cada qual compondo um pedaço ininteligível, de modo que o desenho adquire um sentido, que as peças se encaixem sem deixar lacunas e que a totalidade se ajuste na moldura, se todas essas condições forem preenchidas, sabe-se que foi encontrada a solução do quebra-cabeça e que não existe nenhuma solução alternativa.[15]

Freud confunde, segundo Wittgenstein, o fato de correlacionar de uma nova forma os elementos do sonho, a partir do que a associação livre permite articular na ordem das razões, com a correlação causal entre sonho e desejo. Encontrar com regularidade um desejo realizado como razão de um sonho não nos autoriza, segundo Wittgenstein, a passar da gramática das razões à gramática das causas. “Podemos ser capazes de descobrir certas coisas a nosso respeito por meio desse tipo de livre associação, mas isso não explica porque o sonho ocorreu” (LC: 87).

A noção de visão de aspecto caracteriza o ponto até onde Wittgenstein consente com o trabalho interpretativo. Mudamos o aspecto de um objeto quando o olhamos de outra maneira, sob um novo ângulo, a partir de novas conexões e comparações. Relacionar, por exemplo, determinado elemento onírico a uma lembrança ou a um acontecimento do dia anterior muda o aspecto do sonho. O que Wittgenstein critica, na ideia freudiana de interpretação, é o sobrepasso que se produz entre o trabalho horizontal da associação livre, que permite uma mudança de aspecto, e a verticalização que procura ajustá-lo a um modo de explicação em que o sonho deixa de ser intrigante, como se, justamente, o trabalho de interpretação se convertesse em explicação destinada a nos livrar desse caráter intrigante. Para Wittgenstein, “o que é fascinante no sonho não é o laço causal com os acontecimentos de minha vida, mas o fato de que ele age como um fragmento, um fragmento vivo, de uma história cujo restante permanece obscuro” (VB: 87). Toda interpretação concerne ao fragmento, dirá Wittgenstein; passamos de um ponto a outro do jogo de linguagem e não de um objeto fragmentário a um objeto completo, recoberto pela explicação.

Crítica do assentimento psicanalítico

Nesse sentido, a explicação freudiana se assemelha mais a uma explicação estética do que a uma explicação científica. Uma explicação estética apenas descreve a coisa, não diz o que a coisa é; não busca descobrir novas evidências ou processos causais ocultos, mas ordena o que já nos é evidente de uma nova maneira. Explica-se, em estética, descrevendo-se mais. Não se trata de formular uma explicação causal, histórica ou psicogenética, e sim de chegar a uma relação formal entre a coisa inquietante e uma dada expressão da linguagem. Em uma relação estética os termos estão dispostos um ao lado do outro, sem que a explicação possa enlaçá-los. O que finaliza a cadeia é o que Wittgenstein chama a boa analogia ou a expressão característica, ou seja, o modo de dizer, e não o conteúdo explicativo. A expressão característica é aquilo que o sujeito é capaz de reconhecer como sendo a expressão de sua forma de vida. Podemos lançar mão de um exemplo freudiano retirado de seus Estudos sobre a histeria, para problematizar esse ponto. Trata-se da interpretação da neuralgia facial de uma paciente:

Quando eu comecei a evocar a cena traumática, diz Freud, a paciente viu-se de volta a um período de grande irritabilidade com o marido. Descreveu uma conversa que tivera com ele e uma observação dele que ela sentira como um áspero insulto. De súbito levou a mão à bochecha, soltou um grande grito e exclamou: “Foi como uma bofetada no rosto”. Com isso cessaram-se os sintomas.[16]

Qual a relação que aqui se estabelece entre o sintoma da neuralgia facial e a expressão que parece sustentá-lo? Há, pelo menos, duas formas de se conceber essa relação. Poderíamos dizer que tal expressão se encontra na origem do sintoma, como parece pretender Freud. O sintoma funcionaria aqui como uma metáfora da cena traumática: ela sentiu as injúrias do marido como uma bofetada e converteu essa expressão em um sintoma somático de acordo com o dialeto da histeria. Outra possibilidade é tomar essa expressão – a bofetada – como aquilo que na situação analítica dá expressão ao sintoma, da mesma forma que ao apreciar um quadro frente ao qual nos sentimos intrigados buscamos uma expressão esclarecedora. Nessa segunda acepção não há necessidade de supor que a expressão esteja na origem do sintoma, que seja a causa do sintoma, que o sintoma corresponda exatamente a essa expressão ou que a expressão encontrada explique o porquê do sintoma. Apenas podemos dizer que se estabeleceu uma relação formal entre a cena traumática, o sintoma e sua expressão metafórica.

Para Wittgenstein, descobrir a razão de um sintoma não é o mesmo que formular uma hipótese satisfatória a respeito do que teria se passado no espírito quando surgiu o sintoma ou sobre qualquer outro processo interior. O fato de que essa expressão esclarece o sintoma não pressupõe que ela existisse antes, interiormente. Wittgenstein procura afastar, assim, a ideia de que uma explicação estética seja uma espécie de explicação psicológica. Em outras palavras, a expressão que cura o sintoma não subsistia ao sintoma, mas lhe acrescenta uma descrição, uma boa analogia, que contribui para a sua dissolução como uma palavra que conclui um poema. A explicação estética busca uma expressão esclarecedora e não um porquê. O que caracteriza uma explicação estética é, portanto, a sua dependência de um signo de assentimento que assinala que se chegou ao termo de um processo interpretativo, a um ponto satisfatório onde a cadeia de razões se detém.

Mas o assentimento a uma proposição analítica não pode provir do eu, diz Freud. Ele se abre a uma dimensão temporal em função da divisão subjetiva frente à interpretação que concerne ao inconsciente. É neste ponto preciso que a explicação psicanalítica se distingue de uma explicação estética. Em seu texto Construções em análise[17], Freud parece responder diretamente às objeções de Wittgenstein, que aqui examinamos, propondo outra forma de se conceber a lógica do assentimento analítico. O assentimento do analisante a uma proposição analítica não se afirma por um signo de aceitação do eu, mas de uma forma indireta, que provém do inconsciente. A objeção que caracteriza a crítica vienense da psicanálise – de que o analista parece ter sempre razão, quer o paciente diga sim, quer o paciente diga não a uma interpretação – é admitida nesse texto e leva a uma explicitação do trabalho analítico que toma como referência o fato de que a verdade só pode ser meio-dita, conforme o aforismo lacaniano.

Para Freud, o assentimento a uma construção analítica depende dos efeitos subjetivos que seguem à sua comunicação, remetendo a esse terceiro termo o critério de correção da interpretação. A verdade somente aparece ao lado do que é dito, como um efeito, uma contradição ou um excesso. É em torno desses efeitos que Freud evocará a função da causa, que ele concebe como uma fixação pulsional — que é tanto uma forma de satisfação pulsional como de laço com o objeto – à qual o sujeito se mantém atrelado. A construção analítica ─ que Freud compara a uma conjectura semelhante àquela de um arqueólogo ao trabalhar os fragmentos de uma cultura ─ aponta para essa fixação e força uma nova resposta do sujeito. A fórmula freudiana, “onde isso era, como sujeito devo advir” (wo es war, soll Ich werden)[18] poderia ser lembrada aqui para designar o movimento do sujeito que assente com a causa. A implicação do inconsciente na cadeia de razões exige, no entanto, que o analista se faça fiador da verdade até que um assentimento possa se produzir, sustentado pela relação transferencial. A construção do analista é como um ser intermediário que faz a transição entre a ordem das razões e a causa. A construção incide sobre o limite da explicação, levando a um trabalho ficcional que tem por objetivo, no dizer de Freud, formar um quadro da vida do analisando, isto é, fornecer-lhe uma boa conjectura.

Como vimos, para Wittgenstein, o que condiciona a aceitação de uma explicação psicanalítica é a existência de uma espécie de acordo quanto ao jogo de linguagem da interpretação, reforçado pela atratividade da explicação psicanalítica. Wittgenstein se aferra ao dois da intersubjetividade e da relação de persuasão. Sua crítica acaba recusando, no jogo de linguagem da interpretação psicanalítica, o seu referente. De fato, em nenhum momento Wittgenstein menciona a teoria freudiana das pulsões, que Freud considerava um dos pilares da psicanálise, ao lado da Interpretação dos sonhos.

Sendo assim, segundo Wittgenstein, não se pode ir das razões às causas, não há uma gramática dessa transição. A cadeia de razões se detém diante de uma forma de vida (Lebensformen). O assentimento a uma proposição qualquer implica a possibilidade de compartilhar um jogo de linguagem, isto é, compartilhar uma forma de vida. O assentimento só é possível como um efeito subjetivo do próprio jogo de linguagem, sustentado pela impossibilidade mesma de referir, pois tudo se passa na linguagem. Ele provém de nossos atos, inseridos em uma prática linguística. “Se esgotei as justificações, então atingi a rocha dura e minha pá entortou. Estou então inclinado a dizer: ‘é assim que eu ajo’” (PI: § 217). A solução dos problemas da vida, pela qual um psicanalista pode se interessar, não poderia advir de qualquer tipo de explicação, muito menos de uma explicação causal. Quanto mais se faz vacilar a referência do jogo de linguagem da interpretação, mais se faz necessário assentir à sua própria forma de vida. “Que a vida seja problemática, isto quer dizer que a vida não está de acordo com a forma de vida. É preciso então que você mude sua vida, e se ela se acorda a essa forma, é isso que faz o problema desaparecer” (VB: 41). Nenhuma forma de terapêutica que não seja baseada na busca de sua própria forma de expressão poderia ser aceita por Wittgenstein. Ele permanece aferrado à recusa obstinada de um guia[19] na busca ferrenha da autenticidade que caracteriza sua posição ética, “pois lá onde eu devo ir, lá é necessário que de alguma forma eu já esteja” (VB: 19).[20] Tal posição contrasta com o que Freud entendia ser a única ética possível diante do inconsciente – ali onde isso era, como sujeito devo advir – que mencionamos acima.

Verdade e assentimento: conclusão

Vimos que, do lado freudiano, existe corte entre razões e causa, mas também possibilidade de transição, franqueando, assim, o limite entre o que pode e o que não pode ser dito. Mas é necessário encontrar apoio em uma situação de transferência que sustente, para o sujeito dividido, tal passagem. Para Wittgenstein, querer ultrapassar esse limite seria ceder a uma espécie de pulsão filosófica de dizer onde não se pode mais dizer. É o dilema em que se encontra Wittgenstein ao final de sua Conferência sobre a ética (LC, ed. fr., p. 141). A conferência termina com a constatação da impossibilidade de obedecer a esse limite, a essa pulsão (Trieb), que constitui o sintoma filosófico por excelência e que nos impede de parar de filosofar. Esse retorno pulsional é índice do fracasso em considerar como uma verdade definitiva o traçado do limite entre o que pode ser dito e o que não pode ser dito e anima a perspectiva do segundo Wittgenstein, fazendo do seu retorno à filosofia uma espécie de resposta subjetiva aos efeitos de verdade da escrita do Tractatus. Esses efeitos apontam o parentesco dessa verdade claudicante com o gozo, de acordo com as elaborações de Lacan no Seminário 17, O Avesso da psicanálise. Verdade e gozo se encontram, assim, extraídos do mundo e de todo sistema lógico, de acordo com o que pretende Wittgenstein. Para Lacan, no entanto, se a verdade só se diz pela metade, é porque o limite da linguagem não se pode enunciar de uma vez por todas, a partir de um fundamento proposicional, mas é o que se experimenta a cada tentativa de capturá-la com os recursos da linguagem no ato mesmo de enunciação. Nessa experiência, o analista está necessariamente implicado, pois dele depende a apresentação dos limites do dizível a partir do que lhe é endereçado na transferência.

A leitura do texto freudiano não deixa assim de evocar, conforme constata Wittgenstein, a estranha conjunção entre o prazer da leitura e o apelo à ciência. O objeto da psicanálise resiste à clarificação pretendida por Wittgenstein e desafia a oposição entre linguagem conceitual e linguagem metafórica. Esta conjunção é assumida explicitamente por Lacan, para quem o conceito funciona como um anteparo frente ao objeto que ele pretende desvelar. Por outro lado, a metáfora, em seu engendramento obtido graças às propriedades do puro-significante, é o que permite passar das razões à causa — que aqui assimilamos à verdade do sujeito. A metáfora deixa de ser pensada, então, como figura retórica, para designar “um processo constitutivo de encadeamento literal da significância própria ao inconsciente” (Soulez, 2002, p. 263), mostrando que não há como separar a maneira de dizer do objeto a dizer. Neste sentido, o objeto da psicanálise tem como peculiar o fato de só se constituir na experiência mesma de enunciação que uma psicanálise busca cernir.

Frederico Zeymer Feu de Carvalho é psicanalista da EBP-AMP. É doutor em linguística pela FALE-UFMG e autor do livro: O fim da cadeia de razões: Wittgenstein, crítico de Freud. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FUMEC, 2002.

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Notas

[1]Texto revisto pelo autor. Publicado originalmente em: IANNINI, G. (Org.) O tempo, o objeto e o avesso. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. Agradecemos a Gilson Iannini e à Editora Autêntica pela autorização dada à republicação desse texto em Derivas Analíticas.

[2] Em relação a Wittgenstein, utilizamos nas referências as abreviaturas já consagradas à sua obra, seguidas da paginação.

[3]GARCIA, 1994, p. 147.

[4] FREUD, (1912) 1969.

[5] FREUD, (1927) 1969, p. 71.

[6] LACAN, (1969-1970) 1992, p. 59.

[7] LACAN, (1969-1970) 1992, p. 52.

[8] LACAN, (1969-1970) 1992, p. 58.

[9] LACAN, (1969-1970) 1992, p. 60.

[10] LACAN, (1969-1970) 1992, p. 59.

[11] LACAN, (1969-1970) 1992, p. 59.

[12] SAUSSURE, (1916) 1989, p. 271.

[13] MILNER, 1999, p. 91.

[14] Nos termos em que a desenvolvemos em nossa dissertação de mestrado defendida na UFMG, em 1999 e publicada em 2002 por Annablume e FUMEC com o título: O fim da cadeia de razões: Wittgenstein, crítico de Freud.

[15] FREUD, (1923) 1969, p. 147.

[16] FREUD, (1895) 1969, p. 227.

[17] FREUD, (1937) 1969.

[18]FREUD, (1933) 1969, p. 102. Tradução sugerida por LACAN, J. Écrits. Paris: Seuil, 1966. p. 418.

[19]GARCIA, 1994, p. 147.

[20]Denn dort, wo ich wirklich hin mub, dort mubich eigentlich schon sein.

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