Lucíola Freitas de Macêdo
Tive a chance de ouvir Leila Danziger falar sobre seu trabalho em maio deste ano, por ocasião de um seminário organizado pelo Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG.[1] Naquela ocasião já havíamos trocado uma breve correspondência, pois em 2013 havia escrito para ela, logo após ter lido uma entrevista sua publicada na coluna “O artista por ele mesmo”, de Fátima Pinheiro, para o blog da Editora Subversos.[2] À parte o gosto comum pela poética de Paul Celan, eu já estava à época imersa em uma pesquisa sobre o testemunho, quando encontrei na obra de Leila Danziger algo arrebatador. Estava diante de uma obra-testemunho na qual as relações entre a memória, o esquecimento, a imagem, o som, a escrita e os seus suportes, se enlaçavam de modo absolutamente singular.
Foi nessa ocasião que Leila gentilmente me enviou, por correio, dois preciosos livros editados a partir das suas últimas exposições e seu então recém-publicado Três ensaios de fala.[3] Sim, Leila também é poeta. A poesia irrompera como cintilações, acontecimento difícil e solitário, raro e pontual. Na estrada entre o Rio de Janeiro e Juiz de Fora, entre Berlim, Tel Aviv e outras geografias, isso ia se decantando até a lapidação por ocasião de sua participação na Oficina Literária de Carlito Azevedo. Leio a poesia de Leila Danziger como um contracanto ao seu trabalho como artista visual, que é também poesia, extraída de som, ruído, imagem, feita da perfuração das camadas da linguagem, da imbricação das substâncias, quando pousam em seus diferentes suportes. Toda essa volta para dizer que me permitirei neste escrito sobre o seu trabalho, para a revista Derivas Analíticas, dispensar as apresentações formais. Para estas remeterei o leitor ao primoroso site da artista.[4] Escolhi apenas dizer, neste breve escrito, algo sobre as razões do forte impacto que o encontro com a sua obra me causou e continua a causar.
Já de início, fui capturada por uma súbita e inesperada subversão, pois a artista se serve da palavra plasticamente e da imagem como escrita, o que bagunça os caminhos de apreensão do visto e do ouvido, produzindo uma pequena ferida, um furinho, índices de um troumatisme[5] e de uma abertura ao novo, sob a forma de um esvaziamento dos sentidos previamente constituídos, o que confere à experiência do expectador um breve sentimento de desorientação. Usualmente utilizamos os jornais para estarmos informados e antenados com os fatos do mundo que habitamos. Mas Leila lê os jornais descascando-os, apagando-os, extraindo sua película, esfolando a linguagem, para então, uma vez erodida a matéria-jornal, “turvá-la de poesia”.[6]
É o que chama de ‘escrita por supressão’, para a qual a leitura somente acontece como processo de extração, que se dá por meio de uma série de operações efetivamente materiais: “folhear, selecionar, extrair, dobrar ou estender, passar a ferro, relacionar, acumular, empilhar, fixar”.[7] É assim que a artista nos convida à leitura, na qual só é possível ler empenhando-se o corpo e suas entranhas, seja ruminando, emaranhando-se, misturando-se, seja esquecendo-se, dissolvendo-se, ou mesmo, defendendo-se da “brutalidade do real”. O papel é para Leila, como a superfície da pele, quando perfurada, escalavrada. As operações sobre e por entre as suas finas camadas são uma forma de escrita, que abismada se faz escritura.
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Ferid’alíngua
“Realizo aqui uma escritura feita de lentidão: restos, estilhaços, coisas ínfimas (guardadas, esquecidas, reencontradas), coisas-em-abismo, reflexos, a imagem da imagem da imagem: tudo o que nos escapa. E o que não nos escapa?” Leila Danziger, em Todos os nomes da melancolia.
Quando fui ao encontro de Leila Danziger para escutá-la falar sobre Paul Celan e os nomes próprios– já advertida de seu método de descascar a linguagem, de furá-la e feri-la, até tocar-lhe a letra e fazê-la ressoar, – me perguntava: o que na língua é essa ferida incurável? O que da língua se faz urgente descascar?
Enquanto a escutava recitar o verso de Celan, aquele que fala de Resistir/à sombra da ferida aberta no ar, me lembrava do traûma em sua raiz grega, que é ferida. E me vinham ao mesmo tempo outros versos do poeta, que estava coincidentemente lendo naqueles dias, vários, juntos e misturados. Fala – Mas não separa o não do sim.[1] Lanço a rede que tu/ hesitante carregas/ com sombras escritas por/ pedras.[2] Com silencioso corpo/ repousas na areia ao meu lado, / Superestralada.[3] Lembrei-me dos versos De todas as feridas,[4] de Negro real,[5] e das Conversas com cascas de árvore. Tu, / tira a casca, anda, / tira-me, feito casca, /da minha palavra.[6] Enquanto anotava os fragmentos que irrompiam, em cascata, desordenadamente: Foste minha morte:/pude deter-te, / enquanto tudo me escapava.[7]
A artista, de ascendência judaico-alemã por parte de pai, discorreu nessa ocasião sobre o modo particular como havia herdado, ela própria, a língua alemã, não como um modo de criar laços com o cotidiano, com os familiares ou com o passado, mas “como uma espécie de monumento – opaco, estanque, supostamente desativado –, sinalizando sobretudo perdas”,[8] infensas à rememoração. Foi assim que se deu seu encontro com a poesia de Paul Celan, com esse poeta que, tendo vivido as atrocidades da guerra e o genocídio dos judeus europeus, este também perpetrado por meio da linguagem, através dos lemas, da propaganda nazista e de seus eufemismos, ousara não abandonar, em sua poesia, a língua materna.
Celan se converteu em um poeta paradigmático do pós-guerra por sua decisão de registrar em alemão a catástrofe levada a cabo pela Alemanha. Com seu mundo arrasado, “ferido de realidade”, se aferrou à língua materna, que era tanto a sua própria quanto aquela dos assassinos. A língua era, literalmente, o que lhe restava. Como se somente por meio dessa língua danada, fosse possível reparar o dano.[9] A poesia de Celan reativou para Leila Danziger, esse “monumento sonoro” que é a língua alemã, misto de familiaridade e profunda estranheza, através do qual reabilitou, lentamente, a língua paterna.[10] Se faz urgente descascar a língua alemã – pensei – enquanto escutava Leila falar de sua relação com a arte, com os jornais e com a poesia.
A obra da artista, em confluência com lalangue, lalíngua ou alíngua, nos lança de um só golpe nessa dimensão na qual já não é possível ler constituindo sentidos, em que a leitura se faz contra o sentido, rumo à lalação de uma língua que se forja pelo choque do significante com o corpo, de uma língua afetada por um acontecimento de corpo.[11]
O nome próprio: ruído e ruína
“Não sei bem quando assumi o compromisso de decifrar seu universo, transportá-lo e cultivá-lo em outro meio, mas sei que lhe faço violência. Como toda experiência de mundo que se quer duplicar, traduzir, representar, essa é fadada ao fracasso.” Leila Danziger, em Edifício Líbano.
Um dos aspectos que chamam a atenção de Leila Danziger na poesia de Paul Celan é o seu apelo ao nome próprio. A experiência com os nomes na poesia de Celan a tocou ainda mais fundo ao se deparar, em 1994, com uma imensa listagem dos judeus alemães mortos por ocasião da Segunda Guerra Mundial. Viu nessa lista, seu nome de família impresso dezenas de vezes. A lista com os “76 Danziger” se impôs a ela como um apelo imediato ao testemunho.
Com o nome de família gravado sobre matrizes de metal, impressos em óleo de linhaça e betume, fotografados e transformados em livros da memória, mas também do esquecimento,[12] a artista se dedica à sua série Nomes próprios, título de três exposições realizadas no período entre 1997 e 1998. A série de trabalhos é atravessada pelo desejo de refletir, à flor da pele, a estrutura da memória, em suas formações sedimentadas, instáveis, permeada de falhas, irrupções abruptas e obscuridades.[13] Queria uma imagem-cicatriz, mas se depara com uma imagem-membrana, frágil diante do papel, que parecia mais real que a imagem nele impressa, atestando a fragilidade do instrumento diante de um real brutal e opaco.
Nessa série “quis dar materialidade aos nomes, resgatá-los da morte anônima e serial, expressa pela repetição da palavra verschollen [desaparecido], destino da maioria dos deportados”.[14] Declara ainda que, com as gravuras e livros-objetos que integram a série, buscava reinscrever os nomes no tempo e no espaço, dando-lhes aquilo que perderam: um corpo. Mas constata que a única corporeidade possível para aqueles que foram exterminados pela máquina nazista é a ausência. O trabalho faz pulsar essa ausência, potencializando-a, para “atestar a atualidade dos nomes nos quais se inscreve o trágico desfecho do amálgama judaico-alemão”. Mas há ainda, nessa mesma série, o balbucio, o murmúrio, o rumorejar da língua alemã como língua viva, constituída com os destroços do naufrágio.
Pallaksch. Pallaksch.
É assim que a poesia de Celan, os jornais apagados, descascados, esvaziados e inutilizados em sua função informativa se fazem novamente presentes na instalação Greifswalder Str. 138, que integrou a exposição Bilder des Erinners und Verschwindens [imagens do lembrar e do desaparecer], realizada pela primeira vez em Berlim, em 2003. O trabalho em questão tem como suporte um artigo de um jornal alemão. O título remete ao endereço onde funcionou, entre 1938 e 1942, um abrigo para crianças judias. O jornal é manipulado como “paisagens minadas por urnas, arcas, núcleos de sentido que são os nomes próprios e as palavras com força de testemunho”.[1]
Ao substituir a linguagem jornalística pela poesia e pelo texto de testemunho, segue os vestígios presentes em “Tübingen, Janeiro”, poema-referência de Celan aos anos de isolamento de Hölderlin. Nesse poema, a língua é tida como um contínuo balbuciar: Pallaksch. Pallaksch. A palavra repetida no último verso do poema em questão, inventada por Hölderlin, poderá significar sim e não. A fala extenuada do poeta, ao recitá-la entre o silêncio e a incompreensibilidade, não é uma narrativa, não relata nada, apenas beira a abismal experiência do impossível de dizer. Nessa palavra paradoxal, que contém ao mesmo tempo a língua proscrita e a impossibilidade de proscrevê-la, Celan confere uma forma poética às aporias do testemunho, por meio de uma fala traumatizada, nos diz Leila, e de uma contínua lalação, instalada entre uma urgência e uma impossibilidade.[2] Com sua poesia, e ao continuar a escrever em alemão, o sim e o não parecem constituir um lugar-marca-cicatriz, onde antes havia apenas o espectro do irrevogável aniquilamento. Para Leila Danziger, o poeta restitui à língua alemã o seu som vivo, no âmago mesmo de sua atualidade obscurecida e fraturada. Restitui, assim, certa humanidade à língua, que devolvera aos judeus e aos alemães.
De seu trabalho em torno da palavra intraduzível de Hölderlin e resgatada por Celan, a artista produz a instalação Pallaksch. Pallaksch., na qual busca transformar a fala incessante e o rumor contínuo da linguagem, “numa efetiva escritura de resíduos e ruídos”.[3] E diria ainda, numa efetiva escritura do trauma, como escritura-troumatisme. Leila propõe uma interpretação da palavra intraduzível de Hölderlin por meio da reverberação sem-fim de um ritornelo, a iterar e iterar e iterar: a voz de Paul Celan recitando extratos de “Tübingen, Janeiro” mescla-se às finas camadas de jornais a farfalhar, ranger, roçar, flutuar. Entre os ruidosos escombros do simbólico e o estranho rumor do mundo, “como ouvir o murmúrio dos restos”?[4]
Derivas Analíticas agradece a Lucíola Freitas de Macêdo por sua gentil contribuição e a Leila Danziger por sua generosidade.
Lucíola Freitas de Macêdo é psicanalista, membro da EBP-AMP e Diretora de Ensino do IPSM-MG. Doutora em Psicanálise pela UFMG, Mestre em Filosofia pela UFMG e editora da Coleção Estudos Clínicos (Scriptum).
NOTAS
[1] A convite de sua coordenadora, a Profa. Lisley Nascimento.
[3] DANZIGER, 2012a. Li os poemas de Leila entremeados à pungência das imagens e textos de Edifício Líbano e de Todos os nomes da melancolia.
[4] <http://www.leilaDANZIGER.com>.
[5] Neologismo cunhado por Lacan na lição de 19/02/1974 do seminário Les non-dupes errent, composto pela conjunção entre trou (furo), e traumatism (traumatismo), para dizer do significante quando este faz furo no real. Nessa perspectiva o trauma é um fenômeno que toca o real.
[6] DANZIGER, 2012a, p. 16.
[7] DANZIGER, 2013, p. 26.
[8] CELAN, 2011, p. 59.
[9] CELAN, 2011, p. 107.
[10] CELAN, 2011, p. 51.
[11] CELAN, 1998, p. 13.
[12] CELAN, 1998, p. 17.
[13] CELAN, 1998, p. 37.
[14] CELAN, 2011, p. 127.
[15] DANZIGER, 2013, p. 190.
[16] FELSTINER, p. 21.
[17] DANZIGER, 2013, p. 190.
[18] Em Joyce, o sintoma, Lacan (2003) escreveu, a propósito do sintoma de James Joyce, esse escritor que forçou a língua até os limites do sentido, que este seria da ordem de um acontecimento de corpo. Ainda nessa vertente, Patricia Bosquin-Caroz (2012) articula trauma e acontecimento de corpo, pelo viés da incidência traumática de lalangue, como pura lalação e jaculação, que em sua materialidade sonora irá repercutir, imprimindo-se como uma marca no corpo, já não como corpo especular, mas como corpo de gozo.
[19] SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 152.
[20] DANZIGER, 2013, p. 193.
[21] DANZIGER, 2013, p. 192.
[22] DANZIGER, 2013, p. 194.
[23] DANZIGER, 2013, p. 195.
[24] DANZIGER, 2013, p. 42.
[25] DANZIGER, 2013, p. 43.
REFERÊNCIAS
BOSQUIN-CAROZ, P. Trauma et événement de corps. Quarto: Revue de Psychamalyse. École de la Cause Freudienne, Bruxelles, n. 101-102, juin 2012, p. 97-101.
CELAN, P. A morte é uma flor. Tradução, prefácio e notas de João Barrento. Lisboa: Cotovia, 1998.
CELAN, P. Cristal. Seleção e tradução de Cláudia Cavalcanti. São Paulo: Iluminuras, 2011.
DANZIGER, L. Diários públicos. Rio de Janeiro: Contra Capa; FAPERJ, 2013.
DANZIGER, L. Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012a.
DANZIGER, L. Edifício Líbano. Rio de Janeiro: UERJ, Instituto de Artes: galeria IBEU, 2012b. p. 71.
DANZIGER, L. [et al.]. Leila DANZIGER: todos os nomes da melancolia. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012c. p. 54.
FELSTINER, J. Paul Celan: poeta, superviviente, judío. Madrid: Trotta, 2002.
LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 560-566.
SELIGMANN-SILVA, M. A arte de dar forma ao real: a poética da memória de Leila DANZIGER. In: Diários públicos. Rio de Janeiro: Contra Capa; FAPERJ, 2013. p. 150-154.